Numa destas últimas manhãs a minha caverna foi invadida pela Faneca e pela Marmota, que em alta gritaria, chamavam por mim:
- Carapau, Carapau, Carapau, acorda, acorda!!!
Dei um salto tão grande na cama de algas onde dormia que bati com a cabeça no tecto da pequena divisão onde descanso do meu intenso dia-a-dia.
Ainda só com um olho aberto, reparei que, ao mesmo tempo que gritavam, agitavam um jornal e falavam tão apressadamente e aos gritos que não percebi patavina.
Aos poucos fui acordando, abri o outro olho e encarei-as fazendo gestos para as acalmar e para se calarem. Reparei então que estavam as duas ainda em trajes menores e fiquei sem perceber se era melhor assim ou não. Sinal que ainda não estava bem acordado…
A primeira coisa em que pensei, quando ouvi os gritos que me acordaram, foi que a caverna estava a arder, o que até não é muito fácil acontecer por aqui, mas numa aflição e assim apanhado de surpresa quem vai pensar numa coisa dessas? Podia ser também uma inundação, fenómeno que está tanto na moda, mas a verdade é que eu nem ia notar uma coisa dessas, quanto mais aquelas duas peixinhas que, diga-se em abono da verdade, não sendo asneira nenhuma para fazerem uma boa companhia numa festinha, não são propriamente uns cérebros tipo Einstein.
- Vamos lá a saber o que se passa – disse eu a impor ordem e a tomar as rédeas da conversa nas minhas barbatanas – Fala a Faneca.
Curiosamente, e ainda estou hoje para saber a razão, ela não falou. Estendeu-me o jornal e apontou uma notícia na 1ª página.
Li. Novas regras emitidas pela CE e que iam limitar a pesca do carapau em 40%. Também para outros peixes ia haver novos limites.
Depois de ler olhei para elas e franzi a parte que fica por cima dos olhos a que aqui não se chamam sobrancelhas, atirei o focinho para a frente, gestos que querem dizer “e então? Para quê um tão grande cagaçal?” - e fiquei à espera da resposta.
- Então não ficaste contente? Não é uma boa notícia? – Perguntou a Faneca enquanto levantava uma ponta do baby-doll para enxugar uma lágrima. – Até estou emocionada de alegria.
- É tão bom não é? – Acrescentou a Marmota que não chorava e por isso não levantou nada.
Olhei para elas com olhos de Carapau mal morto, a pensar numas coisas mas a dizer outras.
- Minhas queridas amigas! Isto não é nada bom para mim. E duvido que para a carapausada em geral também o seja. Reparem! Vai aumentar a população. Os jaquinzinhos vão inundar isto e o sossego vai à vida. Os engarrafamentos de trânsito vão impedir-me de me deslocar quando quero, para onde quero e como quero. A concorrência vai aumentar duma maneira exponencial (aqui a Faneca e a Marmota olharam uma para a outra e abriram muito os olhos, vá-se lá saber a razão…), as águas vão ficar mais turvas com tanta poluição, a segurança vai diminuir, e por fim, como se tudo isto não fosse uma grande desgraça, as navalheiras não vão chegar para todos e duvido que isto não acabe em guerra. Estão a perceber, cabecinhas tontas? – E gritei estas últimas palavras.
E acrescentei: - e foi por isto que me vieram acordar, que quase parti a cabeça, que podia ficar gago e que, e que, e que… - e comecei mesmo a gaguejar.
Valeu-me o consolo que me prestaram logo as duas, as palavras calmas e doces e o ar de arrependimento que lhes lia na pele.
Estávamos nós nisto, de nos desculparmos uns aos outros, quando sem pedir licença apareceu a cabeça do Tamboril que vinha perguntar se eu já sabia da grande novidade. E perante o que viu e ouviu, arreganhou os dentes, franziu a testa e fez aquela cara que ainda hoje tem e que levou a que toda a gente o trate por xarroco.
Passei o dia a pensar como Bruxelas interfere na minha vida. Como certas directivas me podem afectar mais do que se, por exemplo, o banco (de areia) aqui próximo desaparecesse, fosse a razão disse a mudança das correntes, fosse mesmo a falência por alguém ter surripiado a areia…
Tenho de informar a minha prima e promover uma reunião com as navalheiras. Precisamos de nos reorganizar.