Quinta-feira, 11 de Abril de 2013

Contratos

 João era um pequeno industrial português com uma filosofia de vida especial, quase sempre bem disposto e procurando andar sempre bem informado sobre tudo o que dizia respeito ao seu ramo de actividade. Para isso frequentava com assiduidade as feiras internacionais. Aproveitava estas oportunidades também para gozar uns dias de férias e fugir da sua rotina diária, sempre agarrado à empresa.

Um certo ano foi a uma feira em Milão e dispôs-se a passar lá uma semana.

Ao fim de dois ou três dias estava farto da feira e de Milão e resolveu passar o resto da semana a viajar pelo norte de Itália e sul de França. Para isso traçou um plano: alugava um carro para essa viagem turística entre Milão e Nice e aqui tomaria um avião para Lisboa. Para isso e antes de sair de Milão, dirigiu-se a um balcão da TWA (companhia de aviação entretanto já desaparecida) e marcou/comprou o bilhete para determinado dia. Ao pagar notou que o funcionário se enganou no preço (o valor deveria andar pelas vinte mil liras e o funcionário pediu-lhe umas duas mil) e João chamou-lhe a atenção para o erro. O funcionário, de nariz arrebitado, respondeu que sabia muito bem o que estava a fazer e João não insistiu mais. Pagou, levou o bilhete e foi à sua vida, que é como quem diz, partiu para a sua viagem de gastronomia e turismo (gastronomia era outra especialidade de João).

Quando no domingo chegou ao aeroporto de Nice para embarcar, foi chamado aos balcões da Companhia e pensou: “cá estão eles a pedirem-me o dinheiro em falta”. Mas enganou-se. Era só um pequeno problema com a bagagem. Embarcou, almoçou a bordo e a meio da tarde chegou a Lisboa. Na sala de desembarque foi chamado a um dos balcões e teve o mesmo pensamento “agora é que me vão pedir o resto do preço do bilhete”.

Enganou-se segunda vez. Era para lhe transmitirem um recado que um familiar lhe tinha lá deixado.

Saiu do aeroporto e foi tratar da vida. Passados alguns dias já se tinha esquecido do episódio. Eis senão quando lhe aparece uma carta da TWA a pedir a diferença entre o preço do bilhete e o valor que de facto ele tinha pago. A carta tinha origem nos escritórios, em Lisboa, da Companhia Aérea.

Estava criado a oportunidade para João tratar do assunto como gostava: a brincar para se divertir um bocado.

Assim respondeu nestes termos:

“No dia tantos do tal, num dos vossos balcões em Milão, fiz um contrato com essa Companhia, mediante o qual se comprometeram a transportar-me

de Nice para Lisboa num dos vossos voos, mediante um valor que eu paguei. Agora, pela vossa carta, entendo que querem desfazer esse contrato, pois estão a alterar o mesmo à posteriori. Agradeço que me confirmem se a minha interpretação está certa ou errada. Com os meus cumprimentos. João”

Passaram mais uns dias e recebe outra carta com mais pormenores. Nela dizem que tinha havido um engano do funcionário, que pediam desculpa pelo facto, mas a verdade é que lhes devia a diferença, cuja liquidação voltavam a solicitar.

Resposta do João:

“ Meus caros senhores: pelos vistos a minha interpretação estava certa. A TWA pretende anular o contrato que fez comigo e estou pronto a aceitar essa anulação. Deste modo essa Companhia torna a pôr-me em Nice e devolve-me as duas mil liras que eu lhe entreguei. Como tenho uma vida muito ocupada, teremos unicamente se combinar a data possível para isso.

Há porém um problema: eu almocei a bordo do avião, aliás uma refeição de muito boa qualidade e não vou poder devolver esse almoço, por motivos óbvios. Estou no entanto disposto a pagá-lo por um preço justo, caso cheguemos a acordo. Fico a aguardar a vossa resposta para concluirmos, deste modo, a anulação do contrato. Com os melhores cumprimentos, João”.

Passam-se mais uns dias e nova carta da Companhia (escritórios de Lisboa):

“Como o assunto da sua carta transcende a capacidade de resolução deste problema pelos nossos escritórios em Lisboa, a mesma foi enviada para a nossa sede nos Estados Unidos da América”.

Passam-se mais uns tempos e vem a tal carta da TWA/EUA.

Dizia mais ou menos isto:
“Caro Senhor: Vimos comunicar-lhe que a correspondência entretanto trocada entre V. e esta Companhia, foi arquivada no dossier dos “Assuntos Curiosos”. Com os nossos cumprimentos, TWA”.

João contou e recontou várias vezes esta história ao longo da vida. Eu fui um dos seus ouvintes.

 

 Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.        

publicado por Carapaucarapau às 10:46
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14 comentários:
De Carapau a 13 de Abril de 2013 às 18:53
Olá "Rafeira", nada rafeira.
Já fui ver a história que recomendas e lembrei-me duma semelhante passada comigo e uns amigos, "noutros tempos", mas não meteu eléctrico nem cantorias. Mas que viramos meia cidade do avesso, isso viramos... :))
Bjo.


De Rafeira a 13 de Abril de 2013 às 19:28
Dá para contar em público? Adorava conhecer... Dá para um post? Não tenho conhecimentos que cheguem para te levar ao Tivoli, mas que fiquei curiosa, fiquei...
Beijinho



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