Ela ali estava à minha frente com aquele ar branco e puro com que sempre a conheci. Olhávamo-nos como se fosse a primeira vez, embora eu sem a interrogação ansiosa com que durante muitos anos a encarei. Às vezes mais calmo, outras mais nervoso, mas sempre com uma ponta de interesse, a interrogar-me “como vai ser desta vez”?
Hoje já a fito com muito mais serenidade, desconfio que ela também já saiba que acabarei por lhe dizer alguma coisa, ainda que, qual melão por abrir, nunca saibamos à partida como a conversa se irá desenrolar.
Quando a encarei pela primeira vez na minha vida, pareceu-me ver nela um sorriso trocista, embora muito disfarçado, como quem está a pensar “vamos a ver como este me vai tratar e o que me vai dizer”.
Eu, com todo o cuidado para a não magoar, a primeira vez é quase sempre complicada, embora reconheça hoje, fruto da ignorância juvenil e duma certa inconsciência me tenha atirado a ela como gato a bofe, ainda que a imagem não seja nada apropriada ao momento.
Se bem me lembro, correu tudo bem, sem traumas para ambas as partes.
Curiosamente a vida em comum nem sempre melhorou com a idade e com os conhecimentos que, por muito poucos que sejam, se vão adquirindo num relacionamento que se vai prolongando pela vida fora. Estabelece-se um modus vivendi de rotina, quantas vezes fiz dela gato-sapato (e é a segunda vez que o gato aparece nesta confissão, vá-se lá saber a razão), outras vezes tratei-a nas palminhas, quando tudo corria bem entre nós.
Suponho, reparo agora que nunca falamos nisto, que pela maneira como lhe pego e a afago, ela já sabe o meu estado de espírito e sente primeiro que eu que tudo vai ser fácil e correr bem.
Interrogo-me muitas vezes, quando me dá gozo estar com ela e tudo corre bem, se ela também se diverte ou não. Ainda que quando lhe aparece uma ligeira ruga em certa zona, eu fique com a sensação que gostou e que me está a desfrutar. Nunca falamos nisto, quando tal ocorre.
Hoje foi um desses dias em que não falamos um para o outro. Ela impávida e serena, eu meio expectante (a pressa não ajuda nada nestes casos) sem saber como me ia sair.
Pergunto-me quantas vezes não estivemos assim, frente a frente, sem saber o que dizer, sem um gesto, eu a pensar em tantas coisas e nem sempre as apropriadas e ela, muda, parada, à espera.
Muitas vezes, tenho quase a certeza, ela nem se apercebeu que eu já tinha realizado os meus intentos e ela ainda se julgava “in albis”.
Como talvez desta vez, em que publicamente a exponho, em que já fiz tudo o que me propus e ela ali, a olhar para mim, à espera que eu me decida.
Só que hoje utilizei o Word para escrever diretamente este post, enquanto ela, a folha de papel branco, continua à espera que me atire a ela.
Ocasiões não lhe hão de faltar.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.