O importante é que reflita corretamente
- Tu já viste isto?
- O quê? Cortaste-te outra vez?
- Raramente me corto, mas agora estão na moda os cortes…
- Não sei do que estás a falar.
- Não admira, não sais daí…
- Não saio porque me amarraste. Daqui só para o chão…
- E ias à vida feito em mil pedaços, não?
- É o meu destino, mais dia, menos dia. E o teu?
- O meu quê?
- Destino.
- Ah! Em mil pedaços acho que não vai ser, mas em milhões e milhões…
- Tu e a mania das grandezas. Sempre em grande…
- Eu diria sempre em pequeno e cada vez mais pequeno. Vamos lá ver se percebes: quantos mais milhões, mais pequenos os pedaços.
- Não estudei essas coisas. Nem contar sei…
- Mas tens-me “contado” cada uma…
- Isso são contas doutro rosário…agora de números não sei nada.
- E achas que perdes alguma coisa?
- Eu nem perco nem ganho. Como sabes só reproduzo fielmente o que vejo.
- Fielmente…talvez seja exagero teu. Aqui e ali já não é bem assim…
- Engano teu, meu caro. Onde há falhas, eu não reproduzo nada, portanto não falho.
- A fazer trocadilhos baratos?
- Nem sei o que isso é.
- A conversar a conversar, cheguei ao fim da barba.
- Olha que ali no pescoço ainda deves fazer mais uma passagem…
- Para a outra margem?
- Para ficares mais apresentável.
- Se não fosses tu…
- Não ironizes…se não fosse eu, era outro.
- Olha que nem sou muito disso.
- Não sei dessas coisas. Só sei do que se passa aqui.
- E sorte tens tu, com janela para a rua…
- Já tenho refletido um ou outro raio de sol mais atrevido.
- Estás a ver? Nem todo se podem gabar disso.
- Não sou gabarola.
- E eu sou?
- Só emito opiniões que me tenham sido dirigidas. Aliás. Emito-as, refletindo-as…
- Muito preciso…
- Quando é preciso.
- Há quantos anos já estás aqui?
- Não sei, não tenho calendário nem relógio, tu é que deves saber.
- Pensando bem, não é assim há muitos anos. Não foste o primeiro…
- E serei o último?
- Isso, meu caro, não sei. No entanto arrisco dizer que se não entrar um golpe de vento pela janela que te atire ao chão, há muitas probabilidades de isso acontecer.
- Não percebi o que disseste, só entendi essa do golpe de vento, já tenho abanado.
- Também eu não percebo certas coisas tuas…
- Como, por exemplo?
- Algumas, mas uma especialmente me traz intrigado há muitos anos.
- Posso saber qual é? Talvez te possa explicar.
- Como sabes, em geral quando te enfrento fico a um meio metro de ti.
- Sim. E qual é a dúvida?
- Reparo que a imagem que me devolves, está também esse meio metro atrás de ti.
- E?
- E…por detrás de ti está uma parede com uns 25 ou 30 centímetros de espessura.
- Se tu o dizes…
- E por detrás dessa parede está o quarto de banho da minha vizinha…
- Onde queres tu chegar?
- Melhor dirias onde eu não posso chegar…
- Porquê?
- Porque eu devia estar no quarto de banho da minha vizinha e sei que ela toma banho todos os dias e eu devia vê-la e nunca a vi.
- Grande trapalhada tu estás a fazer. Sabes que te digo?
- Estou à espera.
- Estuda para saberes por que não vês a tua vizinha a tomar banho e não me faças perguntas parvas.
- Já percebi que também não me sabes explicar e então refugias-te no insulto…
- Então para que falaste para mim?
- Não falei para ti, falei para os meus botões.
- Também…falas com todo o mundo…
- Julgavas que era só contigo?
- Não, isso não. Já te tenho ouvido falar com pessoas e coisas.
- Sou um poliglota, amigo!
- Tu lá sabes, sobre isso não reflito nada.
- Ah! Ah! Aprendeste essas piadas comigo! Mas enfim…prova que não caiem em cesto roto as minhas conversas.
- Ainda bem que falas em cesto roto, porque ali o …
- Calma, já sei. De qualquer maneira obrigado pela atenção que prestas ao que se passa à tua volta.
- É que ouvi um queixume já faz tempo…
- Ah! Ele então queixa-se?
- Pergunta-lhe!
- Não desço tão baixo.
- Põe-o em cima do banco, sempre fica mais a jeito de veres…
- Não te metas onde não és chamado.
- Já cá não está quem falou. Já não me ouves nem mais uma palavra.
- Ai sim? Zangado? Então bom dia! Começou um novo ano.
Vou-me à vida.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.