Numa das minhas últimas visitas ao Porto, descia eu, a penantes, a Rua de Santa Catarina e já quase a chegar à Praça da Batalha, fui abordado por um mânfio, que se me dirigiu assim:
- Eh pá, andas por aqui? Ainda trabalhas lá firma? Não me conheces?
Olhei-o como se olha para um eucalipto que de repente nos aparece na estrada, revirei os olhos para ver se me recordava daquelas fuças, a música não me era estranha, e ele atacou de novo.
- Sou o Manel, pá, o mangas da expedição.
Entrei no jogo.
- É pá tás mais gordo! Não te reconhecia. Andas no comércio de carne, agora? – E com o queixo apontei para os lados em que estava aquele pedaço de carne da perna, que vinha com ele. - Parece a Ivete, Sem Galo - rematei.
- Deixa-te disso pá, é a minha secretária, tem juízo ou andas com as noias todas cegas?
- Tá bem tá, para onde tu vais já eu de lá venho. Então vendes spides, rodinhas ou andas na sustrice?
- Ah! ah! continuas o mesmo gozão; mas ainda trabalhas lá ou não?- Insistiu.
- Achas-me com tabuleta disso? Ando por aí e por acolá a ver se descolo algum graveto. – E deitando de novo os holofotes, a tirar-lhe as medidas, para o pancadão que se tinha afastado a olhar para uma montra, perguntei:- aluga-se ou vende-se?
- Não insistas pá, não mandes mais bitaites ou queres que te parta a cramalheira? Aquilo tem dono.
- Pronto pá. Não se fala mais nisso.
- Olha, tenho ali na carrinha um material mesmo bom para ti. Coisa fina.
- Agora fazes entregas ao domicílio?
- Porra pá, não estejas a mangar comigo. Anda daí ver. Olha que até a marquesada me tem comprado daquilo aos molhos.
- Mas afinal que material é esse? Come-se, bebe-se ou cheira-se?
- Poça pró nevoeiro pá. É assunto sério: Anda ver.
Pelo caminho:
- Tenho ali um número, em preto, que te vai assentar que nem uma luva, preço da uva mijona, mesmo só para amigos.
- Poça pró tango pá! Eu a julgar que tinhas por aí alguma faneca para um refustedo, de papar ou falar ao microfone e vens-me com a porra dos chiantes…
- Cais chiantes cais merdas. Casaco de pele de 1ª ao preço do arroz de quinze, olha-me pra isto! Made in Marrocos, até tem pelo de camelo e tudo. Um luxo!
- Tás pirado, pá. Não tenho pastel para luxos desses, nem penses... – e fui saindo de fininho enquanto ele voltava a meter a mercadoria na carrinha.
Já de longe gritei-lhe: - É pá, lá na firma nunca houve gajo da expedição! – e dobrei a esquina apressado, não fosse o diabo tecê-las.
***
Quatro ou cinco meses antes, tinha sido abordado em Lisboa pelo mesmo mangas. Entrou exatamente com a mesma conversa, eu ainda admiti que fosse alguém que tivesse trabalhado comigo e eu não me lembrasse já dele, mas logo percebi o “golpe” e só lhe disse que ele estava a confundir-me com outro e segui em frente. Estava ele encostado ao carro junto ao passeio em que eu passava e dentro do carro uma zobaida vistosa, rodilhona certamente como ele, mas não sei se era a mesma “secretária” que o “assessorava” no Porto.
Por isso, porque já o “conhecia”, entrei na conversa, quando me abordou esta 2ª vez.
Uma coisa é certa. Devo ter cara de Zé artolas…
Nota: uma parte do calão empregado no texto foi tirado do glossário do livro “Porto naçom de falares” de Alfredo Mendes, publicado pela Âncora Editora.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.