Bichos
Quando eu era imberbe e louro e de olhos azuis, (coisas que nunca fui, com exceção para o imberbe) e tinha ar de mais novo ainda, estudava no liceu em Coimbra e vivia numa casa particular com outros rapazes e raparigas também estudantes e mais velhos que eu. Aliás eu era o único que não vinha da mesma região, pois todos eles tinham frequentado o mesmo liceu e já se conheciam antes. Quando um dos meus companheiros de casa fez anos, (ele era estudante de medicina e estava nos últimos anos), fui comprar um livro para lhe oferecer. Esse livro foi “Bichos” de Miguel Torga. Porquê?
Porque eu “conhecia” Torga, simplesmente por viajarmos muitas vezes no mesmo carro elétrico. Creio que foi a única razão.
Quando estava na livraria a pagar o livro, o empregado perguntou-me:
- Quer pedir ao autor para lho autografar? Ele está ali a falar com um amigo.
Eu era um puto envergonhado e não tive “lata” para aceitar a sugestão. Agradeci, paguei e sai.
Anos mais tarde, vim a saber que Torga era avesso a autografar os livros e pouca gente se pode gabar de ter um livro dele com autógrafo ou com dedicatória. Acho que foi Mário Soares quem há uns anos contou esta faceta do Torga e de como ele também lhe negou autografar um livro. Algum tempo depois, num bibliotecário, ele encontrou um livro de Miguel Torga, autografado por este, e com uma dedicatória. O livro teria sido da escritora Maria Lamas, se não estou enganado. Contou Soares que, na primeira oportunidade em que encontrou Torga, o pôs perante este facto: afinal o escritor também escrevia dedicatórias e autografava livros. Torga terá respondido qualquer coisa como: “que queria você que eu fizesse? Com um par de pernas como ela tinha…!”
A partir do momento em que soube que Torga não gostava de autografar livros, eu pensei muitas vezes o que ele me teria respondido se, na altura daquela minha compra aos 16 anos, eu lhe tivesse pedido para autografar o livro que eu acabara de comprar. Provavelmente ao olhar para o meu ar de menino embaraçado e não querendo desiludir um leitor em potência, mesmo não tendo eu os “argumentos” da Maria Lamas, talvez o autografasse.
E então ponho-me outro problema: eu teria oferecido o livro ou teria ficado com ele para mim? Ainda hoje não sei responder a esta pergunta.
Sei que já ofereci muitos “Bichos” ao longo da vida, que li e tenho a obra toda do Torga (tenho mesmo alguns livros em duplicado, de ofertas que me fizeram). Durante alguns anos fui “companheiro de elétrico” dele, sem nunca termos trocado nem um bom dia nem uma boa tarde, o que aliás estava de acordo com a maneira de ser dos dois.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.