Apresentados os jogadores no post anterior, dispus-me a vê-los jogar uma partida de sueca.
O 1º a jogar fui o Poeta Chiado que atirou para a mesa uma carta pequena de espadas. Pessoa joga o ás e o Camões, lá das alturas, atirou a bisca que tinha seca, despedindo-se dela: “alma minha gentil, que te partiste…” Eça completa deitando o rei e imitando o conselheiro Acácio diz qualquer coisa como: “candeia que vai à frente…”.
Fernando puxa por mais um ás. Luís assiste, José Maria carrega com outro rei e o António também assiste, sem dar pontos e sentencia na qualidade de mais velho: “o primeiro milho é dos pardais”.
- Ah! Ah! – ri Eça e Fernando sorri.
Pessoa puxa agora uma carta sem valor, dizendo “o que há em mim é sobretudo cansaço”, o que leva Luís Vaz a dizer “isso assim não vale, o Álvaro está a ensinar-te” e cobre com o valete. Eça deita uma quina e António Ribeiro faz a vasa com o ás de paus.
Eu continuava fascinado, não tanto pelo que diziam ou pelo que jogavam, mas sim pela maneira como, de longe, lançavam as cartas que descreviam umas trajetórias incríveis e aterravam suavemente em cima da mesa. Sobretudo as que vinham do Camões, lá dos seus seis ou sete metros de altura e as do Eça, que era o jogador mais distante e que lançava as cartas de maneira a subirem a rua do Alecrim e a darem uma curva para atingir a mesa, eram verdadeiros prodígios que me deixavam de boca aberta.
De repente acordei, estava a transpirar, sentia-me mal e tinha tonturas. Vi as horas, eram duas e meia da manhã e levantei-me com cuidado para não cair. A indisposição era grande, “mas que estupidez ter comido uma feijoada de chocos ao jantar”, fui até à cozinha, bebi uma água das Pedras, previamente aquecida, em pequenos goles e descansei um pouco. Já mais recomposto vesti-me, meti outra garrafa de Pedras no bolso e sai a dar uma volta. Sentia que andar a pé me ia fazer bem, para retomar a digestão que o sono tinha interrompido e que era a causa do meu mau estar. Comecei a andar sem destino. Ao fim de algum tempo senti que me estava a sentir melhor e lá pelas três e meia da manhã, quando dei por mim, estava a chegar ao Largo do Chiado. Foi nessa altura que vi na esquina da igreja da Encarnação uns vultos sentados a uma mesa. “Tu queres ver…” – disse baixinho a esfregar os olhos. Mas dando uma olhadela para as três estátuas que daquele ponto eu avistava, reparei que estava tudo bem, tudo de acordo com o bronze e a pedra. O Pessoa até dorme de chapéu, reparei eu.
Já próximo da igreja reparei que os vultos eram quatro pessoas vestidas de verde com umas faixas fosforescentes. Eram cantoneiros da Câmara que andavam na sua faina da limpeza da zona e que tinham feito um intervalo para petiscar qualquer coisa.
- Boa noite! – Disse eu ao chegar junto deles.
- Boa noite – responderam em coro. – É servido?
- Obrigado, não posso comer nada, estou um bocado mal disposto.
- Nem uma cerveja?
- Não, obrigado estou a água das Pedras – disse, tirando a garrafa do bolso.
Em cima da mesa estavam um naco de presunto e meio pão além de umas tantas garrafas de cerveja. A um canto um baralho de cartas.
- Fazem isto todas as noites?
- Não. Só hoje porque o Tobias faz anos e trouxe um petisco.
- E também jogam as cartas? – Perguntei apontando com o queixo o baralho.
- O senhor talvez não acredite, mas a mesa e as cartas já cá estavam quando aqui chegamos, nós só trouxemos as cadeiras ali da esplanada. E mais, todos nós vimos uns tantos papéis a voar com o vento e a caírem aqui nesta zona. Quando nos aproximamos não vimos nenhum papel e só encontramos estas cartas em cima da mesa. Não percebemos nada do que aconteceu, mas aproveitamos a mesa e petiscamos aqui mesmo.
- Oh amigos! Isso não será já efeito das cervejas? – Perguntei a rir, enquanto eles se levantavam, guardavam o resto da bucha e retomavam o trabalho.
- Então continuação de bom trabalho e até outra noite – despedi-me.
- Boa noite. Olhe lá! Não quer levar o baralho? Nós não o levamos, deve estar embruxado.
Peguei nas cartas, meti-as no bolso, dei uns passos, voltei-me e perguntei-lhes:
- Uma coisa, amigos. Vocês não se terão esquecido de tomar as gotas hoje? E comecei a descer a Rua do Alecrim, a sorrir.
Ao passar pelo Eça disse-lhe que ia até ao Aterro, mas ele estava a dormir, ainda e sempre com a mulher nos braços. Raio do homem…
Acabei a noite sentado no Cais das Colunas à espera do 1º raio de sol e do 1º voo das gaivotas. Maneira para dizer que esperava pelo primeiro Metro para voltar para casa.
Quando cheguei eram sete da manhã, abri a janela que dá para um “Ecoponto” que fica do outro lado da rua, mas uns metros mais acima e, uma a uma, consegui meter as quarentas cartas, a partir do meu 4º andar, no contentor azul.
Acredite quem quiser.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.