(2ª parte - 4 anos depois, no jardim do 37)
- Tu daí vês a miúda?
- Vejo. Está descansado que está a brincar com o Ovídeo.
- Mas não confies totalmente nele porque, lá por ser teu filho, ainda é muito novo para tomar conta da Petra.
- Tu gostas muito dela, não gostas? Também não admira. Se não fosses tu ela não estaria aqui. Até lhe puseram o nome que tem em homenagem a ti.
- Ora…
- Já te disse mil vezes. Eu ouvi falarem nisso…
- Já pensaste na volta que isto tudo deu por causa da miúda?
- É verdade! O polícia juntou os trapinhos com a médica, adotaram a miúda, nós estamos juntos, já tivemos duas ninhadas de filhos…
- Foi a sorte grande que saiu à miúda… e a ti.
- A mim?
- Sim, sim a ti. Desde que o meu dono veio para cá, deixaste de ir ao veterinário e recuperaste a alegria de viver.
- Grande alegria! Sempre de barriga cheia e a ter de te aturar e aos pequenos…
- E não gostaste não? E também não os aturaste muito tempo. Levaram-nos…só nos deixaram o Ovídeo.
- Talvez seja melhor assim. Muitos cães juntos só dão zaragatas.
- E depois sabes que estão bem e vem-nos visitar de vez em quando…
- Lá isso… Só a Lolobrigida é que eu não vejo há muito tempo.
- Mas sabes que está para fora e qualquer dia volta.
- Espera um bocadinho. Estão a chamar-me. É o Faísca…
- Não respondas a esse cão vadio. Olha que…
- Respondo, respondo que sou bem-educada. Vou ali à sebe para ver o que ele quer.
- Tu não vais…És mais teimosa que uma cadela…Não tem emenda esta Marilyn…
Passados uns momentos já com a Marilyn de volta:
- Que estás ainda a rosnar? Quem é que não tem emenda?
- O que é que ele queria?
- Tens alguma coisa com isso? Mas que mania essa de te meteres na minha vida…E logo tu…
- Logo eu, o quê?
- Nada. Cala-te boca…
- Olha a miúda a tentar abrir o portão. Tenho de ir lá.
- Não vale a pena. Ela é ainda pequena não chega ao fecho. Importas-te mais com ela que o pai e a mãe…
- Isso com certeza, senão não a tinham abandonado…
- Não era desses que eu estava a falar.
- Chega-te aqui ao pé de mim, querida Marilyn.
- Hum… que é que tu queres? Não venhas com a conversa do costume…
- Até parece que não gostas das minhas conversas… Mas agora o caso é outro.
- Então o que vem a ser?
- Tens de prometer que não contas a ninguém. Nem a nenhum dos teus filhos.
- Também são teus!
- Isso agora!
- Mau. Que queres dizer com isso? Não te admito essas insinuações. Sabes que fui cadela só dum cão. Por acaso um senhor cão, mas que está a ficar cada vez mais chato e difícil de aguentar. Qualquer dia mando fazer testes de DNA para não vires com essas desconfianças...
- Que é isso do DNA?
- Sei lá…Ouvia dizerem isso nas telenovelas, quando eu tinha tempo e me deixavam vê-las. Agora tenho que te aturar…
- Ain, ain, ain… Gosto de te ver zangada. Ficas ainda mais bonita.
- Está bem, disfarça. Mas vais-me contar essa história ou não?
- Primeiro promete que guardas segredo.
- Absoluto! Palavra de cadela.
- Não tencionava contar isto a ninguém, mas para veres quanto confio em ti, aqui vai.
- Desata essa língua. Já estou em pulgas.
- Vai-te coçar lá para longe que eu sou alérgico…
- Deixa-te disso. Conta lá!
- Ouve então. Sabes que eu conheci a mãe da Petra?
- Não me digas! Não acredito! E ficaste calado?
- Eu explico. Três ou quatro dias depois de ter descoberto a miúda no contentor do lixo…
- Ainda me lembro desse dia! Estavas todo vaidoso e eu fiz-te companhia.
- …eu fui dar uma volta pelo campo com o meu dono, como fazíamos muitas vezes.
- Foste sempre um sortudo. E eu aqui presa…
- Não me interrompas senão não conto mais.
- Está bem, conta.
- Como disse, íamos pelo caminho fora e de repente senti um cheiro que me lembrou de repente o da Petra, que eu tinha farejado uns dias antes. Fui atrás dele e descobri uma mulher que parecia que se estava a esconder. Nem pensei. Ladrei daquele jeito que tu sabes que faço quando descubro alguma coisa importante.
- Até estou a ficar arrepiada…
- A mulher deu um grito com medo, o meu dono chamou-me também aos gritos a mandar-me calar e disse-lhe para ela ter calma que eu não lhe fazia mal. Nunca me tinha falado daquela maneira. Caí em mim, calei-me e afastei-me para a sombra duma árvore. Fiquei só a rosnar baixinho, ofendido. Era a mãe da miúda.
- Tens a certeza?
- Duvidas?
- Se tu o dizes. Com esse nariz nunca te enganas.
- E então naquele tempo… Não me escapava mesmo nada.
- E como era ela?
- Bonita. Aloirada. A Petra é a cara dela.
- E tu porque te calaste?
- Sabes que pensei muitas vezes nisso. Foi o meu instinto de cão. Percebi que o melhor para a miúda… olha nem sei bem explicar.
- Calculo…
- Bem…vou dizer-te tudo o que se passou naquela altura. A maneira como o meu dono gritou para mim - nunca o tinha feito assim – o modo como olhou e falou para ela…houve ali qualquer coisa de estranho. Eu tive o pressentimento que ele percebeu logo o que eu tinha descoberto e não quis que eu avançasse…Então calei-me. Ele depois voltou para casa e eu vim atrás dele, a passo, sempre calado. Ao chegar a casa ele ainda me fez uma festa mas eu nem retribui. Estava mesmo ofendido. Ele é polícia tinha obrigação de ter percebido e de ter tido outro comportamento comigo.
- Ainda não esqueceste?
- Não, mas agora já não ligo.
- E achas que ele percebeu que a mulher era a mãe da Petra?
- Hoje já não tenho a certeza. Mas durante um tempo andei convencido disso, porque tudo o que tinha acontecido nesses três ou quatro dias e o que acabou por acontecer mais tarde, parecia que me dava razão. Nesses três ou quatro dias ele já tinha falado com a tua dona várias vezes, com muitos sorrisos de parte a parte (até aí nem bom dia nem boa tarde, lembras-te?) e os dois sempre a falar na miúda… parece-me que nessa altura ele já pensava no que veio a acontecer…
- Quem havia de dizer? Um solteirão daqueles…
- E a tua dona? Não era também uma solteirona chata e emproada?
- Continuas a não a gramares, Petrarca!
- Nunca mais me hei de esquecer daquela vez…e das pedras…Mas enfim, não morro de amores por ela, mas como agora me trata bem e trata bem da miúda e o meu dono gosta dela…já enterrei o machado de guerra há muito, tu sabes.
- Ena! A falares que nem oPetrarca! Muito bem.
- Como é que sabes como falava o Petrarca?
- Essa pergunta é boa. Se tu não fosses tão ciumento eu diria, só para gozar contigo, que tinha sido o Faísca…
- Mau! Mau! Mau!
- Esquece. Agora foi uma brincadeira minha… Mas diz-me uma coisa: nunca mais viste a tal mulher?
- Não. Nunca mais. Durante semanas farejei por todo o lado e nunca mais a vi. Foi embora. Deve ter sabido que a miúda estava bem e desapareceu. Foi melhor assim para todos.
- Sabes Petrarca, há uma coisa que me intriga em toda esta história.
- O que é?
- Porque raio a mãe abandonou a criança num caixote do lixo e não junto à porta duma casa, ou na igreja, ou qualquer outro local onde haveria mais hipóteses de alguém a encontrar?
- Sabes por que sempre simpatizei contigo Marilyn? Porque és muito mais esperta do que pareces…ain, ain, ain…
- Que gracinha!
- Também já pensei muito no assunto e tenho uma teoria para explicar isso. Não sei é se ta devo dizer…
- Deixa-te disso e conta.
- Diz-me uma coisa, Marilyn. Quem te parece que seria capaz de descobrir a Petra ainda com vida num contentor do lixo?
- Tu descobriste.
- Ora aí está. E quem te disse a ti que não era isso mesmo que a mãe da criança queria? Que fosse eu o único capaz de…
- Petrarca! Isso agora é demais. Sei que és muito vaidoso, mas pensares uma coisa dessas… é superior às minhas forças. Sabes o que te digo?
- Cadela desavergonhada que te vou morder uma orelha…
- Não mordes não, que eu fujo. Vou jogar à bola com a Petra e o Ovídeo…
- Isso…tens cá um jeitinho… Se não fosses melhor noutras coisas…ain, ain, ain…
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.
Boa Páscoa!