Na casa do meu avô havia uma pequena divisão que era conhecida pelo escritório. Tinha uma secretária com o tampo preto, em cima da qual estava o tinteiro com dois recipientes para tinta (preta e vermelha), que eu conheci já secos, uma pasta revestida com um papel mata-borrão, que em princípio servia para se escrever sobre ela, e duas canetas de aparo. Um pequeno armário e um canapé completavam o mobiliário. Havia ainda uma planta junto à janela, que tinha tomado conta duma boa parte da divisão e não permitia fechar as portadas da janela, um macaco de loiça pendurado por um fio e que fazia macaquices no emaranhado da planta como se estivesse na selva, uma caixa de música completamente desmantelada e uma guitarra praticamente sem cordas. Na parede maior, mesmo no meio e logo acima do encosto do canapé, estava uma gravura (?) encimada pelas palavras “Home Fleet”. Eram dezenas e dezenas de navios de todos os tamanhos e feitios pertencendo à Armada de Sua Majestade** e estavam dispostos por filas, sendo os primeiros os maiores e onde se distinguiam os nomes e respetivos números e depois iam diminuindo de tamanho até serem praticamente pontinhos.
Vim a saber um dia, que esta Armada estava ali “ancorada” desde o princípio dos anos 40, tendo “pedido abrigo naquelas águas” por iniciativa da Embaixada de Inglaterra em Portugal, juntamente com mais papéis que também se conservavam dentro duma gaveta. Tudo isto por ali se aguentou até finais dos anos 60.
Faziam parte da propaganda que a embaixada inglesa (a alemã fazia a mesma coisa) enviava a certas pessoas durante a 2ª guerra mundial (1939-1945) numa ação para animar as hostes aliadas e cativar simpatizantes, acho eu. Lembro-me desde sempre dessa gravura. Quando aprendi a soletrar as primeiras palavras olhava para aquilo e tentava ver se percebia alguma coisa. A certa altura defini para mim que aquilo devia querer dizer “Homem Flete”, que estaria mal escrito e que eu sabia o que era um Homem mas não sabia que Flete seria aquele. Ajoelhava-me no canapé para ficar com o nariz mais próximo dos barcos e ficava ali a apreciar a cena. Devo ter feito isto centenas de vezes, assim como devo ter iniciado centenas de vezes a contagem dos barcos, sem nunca ter chegado ao fim.
Com o tempo, as moscas foram aumentando a “esquadra” e já era difícil saber onde acabavam os barcos de Sua Majestade e começavam os barcos-mosca.
Quando comecei a arranhar o inglês fiquei a saber que Home queria dizer casa e que Fleet queria dizer frota. Em boa verdade aquilo sempre foi a frota da casa do meu avô. Um dia, por volta dos anos 70 a parede foi ocupada por um armário comprado num ikea de ocasião e nunca mais tive notícias da Armada.
Da caixa de música também consegui arrancar alguns sons picando os dedos (hoje barbatanas) nos picos do cilindro para o fazer girar e arrancar uns gemidos às poucas palhetas que restavam.
E quanto à guitarra, foi mandada arranjar e, era eu já Carapau quase de Corrida, foi-me oferecida e levei-a ao ombro quando, mala de cartão na mão, me fui instalar numa cidade próxima, onde era tradição uns tantos aprenderem a tocar guitarra. Nunca me interessei por ela, à custa de muito dedilhar ainda consegui arrancar-lhe, mas numa só corda, os primeiros acordes da conhecida “Opus” “Alecrim, alecrim aos molhos”, mas nunca cheguei à parte em que “por causa de ti choram os meus olhos”. Um dia agarrei novamente na mala, fui mais para norte e deixei-a entregue a uns Carapausitos que era suposto olharem por ela. A verdade é que nunca mais lhe pus a vista em cima. Perdeu-se numa curva do tempo.
Hoje o pequeno escritório ainda lá está, mas nem a guitarra, nem a caixa de música, nem o macaco, nem a Home Fleet fazem parte da sua decoração. E eu também já nem me lembro da última vez que lá entrei, ainda que a porta esteja sempre aberta para a visita.
** Esta Majestade era o rei George VI, o pai da atual Majestade, ainda que não pareça, pois uma era king e a outra é queen.