Quinta-feira, 10 de Fevereiro de 2011

Home Fleet

 

                   

 

Na casa do meu avô havia uma pequena divisão que era conhecida pelo escritório. Tinha uma secretária com o tampo preto, em cima da qual estava o tinteiro com dois recipientes para tinta (preta e vermelha), que eu conheci já secos, uma pasta revestida com um papel mata-borrão, que em princípio servia para se escrever sobre ela, e duas canetas de aparo. Um pequeno armário e um canapé completavam o mobiliário. Havia ainda uma planta junto à janela, que tinha tomado conta duma boa parte da divisão e não permitia fechar as portadas da janela, um macaco de loiça pendurado por um fio e que fazia macaquices no emaranhado da planta como se estivesse na selva, uma caixa de música completamente desmantelada e uma guitarra praticamente sem cordas. Na parede maior, mesmo no meio e logo acima do encosto do canapé, estava uma gravura (?) encimada pelas palavras “Home Fleet”. Eram dezenas e dezenas de navios de todos os tamanhos e feitios pertencendo à Armada de Sua Majestade** e estavam dispostos por filas, sendo os primeiros os maiores e onde se distinguiam os nomes e respetivos números e depois iam diminuindo de tamanho até serem praticamente pontinhos.

Vim a saber um dia, que esta Armada estava ali “ancorada” desde o princípio dos anos 40, tendo “pedido abrigo naquelas águas” por iniciativa da Embaixada de Inglaterra em Portugal, juntamente com mais papéis que também se conservavam dentro duma gaveta. Tudo isto por ali se aguentou até finais dos anos 60.

Faziam parte da propaganda que a embaixada inglesa (a alemã fazia a mesma coisa) enviava a certas pessoas durante a 2ª guerra mundial (1939-1945) numa ação para animar as hostes aliadas e cativar simpatizantes, acho eu. Lembro-me desde sempre dessa gravura. Quando aprendi a soletrar as primeiras palavras olhava para aquilo e tentava ver se percebia alguma coisa. A certa altura defini para mim que aquilo devia querer dizer “Homem Flete”, que estaria mal escrito e que eu sabia o que era um Homem mas não sabia que Flete seria aquele. Ajoelhava-me no canapé para ficar com o nariz mais próximo dos barcos e ficava ali a apreciar a cena. Devo ter feito isto centenas de vezes, assim como devo ter iniciado centenas de vezes a contagem dos barcos, sem nunca ter chegado ao fim.

Com o tempo, as moscas foram aumentando a “esquadra” e já era difícil saber onde acabavam os barcos de Sua Majestade e começavam os barcos-mosca.

Quando comecei a arranhar o inglês fiquei a saber que Home queria dizer casa e que Fleet queria dizer frota. Em boa verdade aquilo sempre foi a frota da casa do meu avô. Um dia, por volta dos anos 70 a parede foi ocupada por um armário comprado num ikea de ocasião e nunca mais tive notícias da Armada.

Da caixa de música também consegui arrancar alguns sons picando os dedos (hoje barbatanas) nos picos do cilindro para o fazer girar e arrancar uns gemidos às poucas palhetas que restavam.

E quanto à guitarra, foi mandada arranjar e, era eu já Carapau quase de Corrida, foi-me oferecida e levei-a ao ombro quando, mala de cartão na mão, me fui instalar numa cidade próxima, onde era tradição uns tantos aprenderem a tocar guitarra. Nunca me interessei por ela, à custa de muito dedilhar ainda consegui arrancar-lhe, mas numa só corda, os primeiros acordes da conhecida “Opus” “Alecrim, alecrim aos molhos”, mas nunca cheguei à parte em que “por causa de ti choram os meus olhos”. Um dia agarrei novamente na mala, fui mais para norte e deixei-a entregue a uns Carapausitos que era suposto olharem por ela.  A verdade é que nunca mais lhe pus a vista em cima. Perdeu-se numa curva do tempo.

Hoje o pequeno escritório ainda lá está, mas nem a guitarra, nem a caixa de música, nem o macaco, nem a Home Fleet fazem parte da sua decoração. E eu também já nem me lembro da última vez que lá entrei, ainda que a porta esteja sempre aberta para a visita. 

 

** Esta Majestade era o rei George VI, o pai da atual Majestade, ainda que não pareça, pois uma era king e a outra é queen.

publicado por Carapaucarapau às 14:09
link | favorito
De Teresa Santos a 14 de Fevereiro de 2011 às 13:26
Pronto, lá te venho estragar o dia! Sim, porque estavas muito convencidinho que eu tinha desaparecido, fugido, morrido (não era impossível, não é verdade?!), em suma, pensavas estar FINALMENTE liberto desta alma que não nasceu APENAS para te atormentar, mas também...
Ora vamos ao post.
Lido calmamente, "saboreado", lá fui de parágrafo em parágrafo.
Chegada ao macaco de loiça, uma paragem. Como é que o dito conseguia fazer macacadas, sendo de loiça e estanhando no emaranhado da planta ? Não sei, mistérios de Carapau...
Depois, regozijei-me com a evolução do inglês: home igual a casa e não a homem. Óptimo!
Por último vem o espanto: como é que alguém confia a um Carapau escamudo o que quer que seja? E assim desapareceu a bela guitarra que nas mãos do fiel(?!) depositário nem tocar o "alecrim aos molhos" sabia (uma vergonha!).
Posto isto, resta-me agradecer ao Carapau mais janota da blogosfera, o belo texto.
Consegui visualizar cada canto, cada objecto, cada espaço com uma imensa nitidez.
E fiquei com pena, que parte daquele teu mundo de infância, o mundo tão característico daquele espaço que foi um escritório, tenha sido esvaziado da sua autênticidade, vazio que, penso, talvez seja a causa da ausência das tuas visitas.
Nostalgias que ficam, apenas isso, nostalgias.
Abraço, meu Carapauzito.


Comentar:
De
  (moderado)
Nome

Url

Email

Guardar Dados?

Este Blog tem comentários moderados

(moderado)
Ainda não tem um Blog no SAPO? Crie já um. É grátis.

Comentário

Máximo de 4300 caracteres



Copiar caracteres

 



.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Dezembro 2019

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6
7

8
9
10
11
12
13
14

15
16
17
18
19
20
21

22
23
24
25
26
28

29
30
31


.posts recentes

. E vai (mais) um...

. Pó e teias de aranha

. Aleluia!

. Dignidade

. Balanço

. Outros Natais...

. A dúvida

. Promessas...

. Pulítica

. O não post...

.arquivos

. Dezembro 2019

. Novembro 2018

. Dezembro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

blogs SAPO

.subscrever feeds

Em destaque no SAPO Blogs
pub