Quinta-feira, 9 de Dezembro de 2010

A história se uma avaria

 

                                     O que faz aqui este galo do Picasso, é coisa para se ver mais tarde.

 

 

(... ou uma avaria com história)

 

 

Um curto-circuito na instalação eléctrica do carro, deixou-me parado à entrada duma auto-estrada. Já há dias que se tinha manifestado, mas com mais ou menos dificuldade lá tinha resolvido sempre o problema. Desta vez foi definitivo. Peguei no telemóvel e liguei para o serviço de “assistência em viagem” e passado um quarto de hora o carro foi rebocado para a oficina.

O episódio fez-me lembrar um outro semelhante passado há uns anos com um amigo meu, que ainda hoje o conta com muita graça e juntando sempre mais uma pitada. “Quem conta um conto acrescenta um ponto” e é o que ele faz. Foi assim a história dele:

Um dia teve de se deslocar ao Alentejo para tratar dum assunto e fez a viagem no carro que tinha na altura – um Simca 1000 (marca hoje englobada na PSA Peugeot-Citroen).

Era um carro pequeno com muita genica e o meu amigo era um artista a mover-se pelas ruas e ruelas da cidade. Sou o “rei das vielas” costumava ele dizer.

Estava portanto ele no Alentejo e, lá na vila onde teve de ir, deram-lhe a indicação dum trajecto alternativo, por estradas secundárias que encurtava em muitos quilómetros o regresso a casa, pois era um tempo em que ainda não havia auto-estradas. Aceitou o alvitre e meteu rodas ao caminho. Entretanto a tarde ia caindo rapidamente, o tempo que até aí não tinha estado famoso começou a piorar e de repente viu-se no meio duma tempestade tremenda, com chuvas diluviais. Passado pouco tempo o carro começou a falhar, aos solavancos e acabou por parar. O meu amigo fez umas tantas tentativas para o pôr a funcionar mas não conseguiu. Nem tugia nem mugia. Esperou que passasse alguém para pedir uma boleia para a povoação mais próxima, que ficava a uns 10 ou 12 km, mas nem viva alma por ali passava. É altura de dizer que naquele tempo ainda não havia telemóveis e portanto o contacto com alguém a partir do local era impossível. Só na aldeia ou vila mais próximas teria acesso ao telefone, para poder ligar para o Automóvel Clube de Portugal, de que o meu amigo era sócio, para o poderem socorrer enviando um pronto-socorro. Desesperou. Passadas umas 2 horas, já era noite e então a tempestade amainou e a chuva parou. Saiu do carro, olhou em volta e conseguiu vislumbrar lá muito longe uma luz no meio da charneca. Resolveu pôr pés ao caminho em direcção à luz que para ele era como que a estrela do norte a guiar-lhe os passos. Depois duma longa caminhada chegou a um pequeno monte alentejano, constituído só por uma casa e alguns anexos. Bateu à porta. Veio atendê-lo uma mulher “quarentas e tantos” como ele costuma dizer, bem parecida e com ar despachado. Contou a sua história, começando por invocar a sua qualidade de sócio do Automóvel Clube de Portugal que lhe resolveria o problema, só que precisava de comunicar com eles. O que ele pretendia era ver da possibilidade de alguém o poder levar à vila para fazer o telefonema salvador.

A senhora ouviu a história, disse-lhe que não tinha transporte para lhe oferecer, mas que tinha telefone que ele podia utilizar. O meu amigo nem queria acreditar que ali no meio do deserto houvesse telefone. Entrou, a senhora indicou-lhe o aparelho que ficava no corredor e ele discou o número do ACP. Mas nem um ruído ouviu. Tentou outra e outra vez com o mesmo resultado. A senhora disse-lhe que com a tempestade certamente teria caído a linha telefónica e assim sendo talvez nem no dia seguinte teria o telefone a funcionar. O meu amigo ficou desanimado sem saber o que fazer. A senhora deu-lhe uma sugestão: “mantenha-se calmo, ofereço-lhe jantar e dormida, amanhã de manhã se o telefone já funcionar o senhor resolve o seu assunto, se não funcionar o senhor toma a camioneta da carreira que passa lá em baixo na estrada por volta das 9 horas e vai à vila tratar da sua vida”. Não havia outra coisa a fazer. Ele agradeceu muito, ficava incomodado por vir incomodar toda a gente, mas parecia-lhe a única saída. “Calcule a Senhora isto: sou sócio do ACP há uns anos e nunca tive necessidade de me socorrer dos serviços de desempanagem e agora que precisava, acontece que não os posso contactar”. Isto dizia o meu amigo sublinhando várias vezes o facto de ser sócio do Automóvel Clube de Portugal.

Chegou a hora de ir para a mesa. Com grande espanto do meu amigo só havia talheres para duas pessoas: para ele e para a sua hospedeira de ocasião. Fez reparo. Ela respondeu que vivia sozinha há uns anos e que estava assim muito bem. Tinha uma pequena herdade de que tomava conta e uma vida calma e desafogada. Durante o jantar falaram disto e daquilo, cada qual contou o que fazia, como vivia, do que gostava e não gostava, enfim uma conversa de ocasião entre duas pessoas que se desconhecem.

“Amanhã oxalá o telefone já funcione para me pôr em contacto com o ACP” disse o meu amigo pela última vez, quando se despediu para se ir deitar.

Foi uma noite longa, conta ele. Adormeceu, acordou e voltou a adormecer, sonhou que estava num deserto, que tentava falar com o ACP mas eles não o ouviam, enfim…um pesadelo.

Levantou-se cedo. Avançou para o telefone mas hesitou, pois ele ficava no corredor perto da porta do quanto da senhora dona da casa. Não quis fazer barulho e foi em bicos de pés até à porta da rua. Saiu. Lá fora estava um dia lindo, a bonança tinha mesmo vindo depois da tempestade. Deu uma volta pelo pátio, pelas instalações agrícolas e parou em frente à capoeira a olhar para os animais. Galinhas, galos, patos, até um par de perus havia. Ficou parado e lembrou-se da sua infância e da casa dos avós. Tão absorto estava que nem deu conta da senhora que chegou junto a ele e lhe perguntou se tinha dormido bem. “Lindamente” respondeu ele, mentindo. “Mas acordei cedo e resolvi vir apanhar um pouco de ar antes de tentar ver se o telefone já funciona para ligar para o ACP. Entretanto estava a apreciar o seu galinheiro e estou intrigado com uma coisa”.

“Ai sim? Diga lá o que o intriga”. “Quando eu era miúdo costumava passar parte das minhas férias em casa dos meus avós, lá para o norte. Lembro-me que na capoeira da minha avó só havia um galo e muitas galinhas. Agora reparo que aqui há quase tantos galos como galinhas e era nessa diferença que eu estava a pensar”. A senhora olhou para ele, sorriu e respondeu-lhe assim: “Aqui também se passa mesmo. Galo, galo é só aquele, ali ao fundo junto à rede, com a grande crista. Os outros são todos sócios do Automóvel Clube de Portugal”.

E, sempre que conta este episódio, o meu amigo solta uma sonora gargalhada!

 

publicado por Carapaucarapau às 18:08
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15 comentários:
De Maria Araújo a 10 de Dezembro de 2010 às 09:49
Espectacular história.
Grande resposta da senhora. (eu até pensei que deste acontecimento para um apaixonamento teria sido um passo curto).
Mas Carapau, és um homem de muitas histórias.

Beijo


De Carapau a 10 de Dezembro de 2010 às 15:05
Passo curto?
Parece que o corredor era comprido, mas vou informar-se a esse respeito.
:-)
Bjo.


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