Conheço-o há muitos anos e ele a mim conhece-me há muitos mais e duma certa época da minha vida sabe mais de mim do que eu próprio. Por isso falo muitas vezes com ele e deveria falar ainda mais se a preguiça não comandasse uma parte importante do meu tempo. O último encontro foi há dias e da conversa retiro este pedaço:
- Olá! Está bom? Já o não via há uns bons meses!
- Vou andando e tu?
- Também cá vou indo. O senhor está cada vez com melhor aspecto…
- Nunca me queixei do aspecto.
- Cabelo todo, poucas brancas, nada de rugas na cara…
- E já cá cantam 83.
- Parece que tem uns 50…
- Isso também eu queria! Mas as minhas pernas…
- Que têm elas?
- Já não me levam onde eu quero.
- E onde quer ir?
- Ora… a tantos sítios. Nunca fui de estar parado.
- Lá isso…
- Agora tem de ser tudo muito mais calmo.
- Não vai lá hoje, vai amanhã…
- Isso é bom de dizer. Eu queria lá ir… era agora mesmo.
- “Lá” onde?
- Maneira de falar. Não queria estar dependente dos humores das minhas pernas. Agora tenho de estar mais tempo sentado.
- Sentado também se vai “lá”.
- Mas não é a mesma coisa.
- E a “patroa” vai bem?
- Nem por isso! Está pior que eu. Por falar nisso…
- Diga…
- Está na altura de a levar a outra consulta. O teu irmão estará “por lá”?
- O melhor é para o mês que vem. Ele anda por aí de férias. Fale com ele a combinar…
- Então falo para a semana.
- Acho melhor. E o senhor tem ido às consultas?
- Eu? Vou…quando é preciso; mas quanto menos, melhor.
- Sinal que se sente bem…
- Nada disso. Sei que estou velho, não preciso que mo digam…
- Não estou a perceber…
- A semana passada tive de levar a mulher ao hospital, de urgência, sentiu-se mal …
- E depois? Que tem isso a ver…
- Tem tudo. Estava já há quase duas horas à espera de ser chamada e fui saber se estava esquecida e sabes o que me responderam?
- Sei lá… que estava muita gente…
- Pois estava…
- Está sempre…
- Queres mesmo saber o que me responderam?
- Sim, diga.
- Foi assim mesmo: “que quer? Há muita gente mais nova que também ainda não foi atendida”.
- Não me diga?
- Digo e repito. O tipo deve ter-se distraído e disse-me a verdade. Foi então que senti que estão a considerar que já estou a mais. Eu e os outros como eu. Eu já tinha pressentido isso noutras ocasiões, mas nunca mo tinham dito na cara.
- Não deve ser nada disso! Deve ter percebido mal…
- Também tu?
Olhei para ele muito sério e ele sorriu-me. Depois levantou-se lentamente e foi colher um melão, ali no quintal onde decorria a conversa.
E ficamos a comer melão e a falar disto e daquilo.