Terça-feira, 29 de Junho de 2010

Um fio de cabelo (conclusão)

(... continuação)

 

- Então amanhã cá estarei.

- Amanhã, lamento, mas não pode ser. Estamos fechados.

- Que pena! Ficará para outro dia.

- Muito bem. Terei todo o prazer em lhe oferecer o jantar. Sempre será uma pequena compensação para…

- Por favor! Não me fale em compensações. Mas… - houve uma hesitação da parte dele - …mas se quer ter essa amabilidade, ouso perguntar: serei muito inconveniente se a convidar para jantar amanhã comigo?

- Inconveniente não é. Mas se nem nos conhecemos, qual a razão desse convite?

- Digamos que será para corresponder, ainda que antecipadamente, ao convite que acaba de me fazer para vir aqui jantar um dia destes. – E sorriu.

- É sempre assim tão, desculpe o termo, aproveitador de oportunidades?

Estavam a olhar bem nos olhos um do outro, já há minutos que sentiam um certo fluido a envolvê-los, os olhos deles brilhavam, e então Ele, fez uma pausa e respondeu, a sorrir.

- Sou.

- Então eu aceito – respondeu ela, de imediato.

Chegou o novo bife, Ela deu então ordem à empregada para levar o primeiro prato para dentro e Ele sentou-se para jantar, não sem antes lhe perguntar se lhe queria fazer companhia.

- Não, obrigada, faço-lhe companhia amanhã.

 

E assim foi. No dia seguinte foram jantar juntos, na cidade que ele bem conhecia, a um bom restaurante. Falaram animadamente sobre tudo e sobre nada e o clima que no dia anterior se tinha instalado entre eles, continuou. Não admirou nenhum deles, portanto, que daí a poucos dias estivessem deitados, pela primeira vez, na mesma cama.

E foi já no período do “descanso dos guerreiros”, quando deitados lado a lado, restabeleciam o ritmo cardíaco, que Ela, repentinamente soltou uma gargalhada. Ele virou a cabeça e perguntou-lhe o que tinha acontecido.

- Estava a pensar na cena de há dias, do cabelo no sparguetti, e não contive a gargalhada. O ar zangado com que então reclamaste do cabelo, e hoje, aqui, afinal…enfim…sabes o que eu quero dizer…

- Sei… – e virando-se de lado para Ela, com o dedo indicador percorreu-lhe a testa, o nariz, contornou os lábios, desceu pelo pescoço, pelos seios e por aí abaixo até onde chegou com o braço esticado, e acrescentou: - e nem queiras saber o barulho que teria feito se, por acaso hoje, tivesse encontrado por aqui um fio de spaguetti…

- Maluco!

Riram-se os dois, abraçaram-se e beijaram-se uma vez mais e ambos tiveram a certeza que tinham começado uma terna e longa amizade.

Agora, anos passados, Ela ainda invoca, por vezes, o modo como se  tinham conhecido. E diz que a vida deles, em conjunto, estava presa por um frágil fio de cabelo.

Ele costuma sorrir destas tiradas d’Ela e chama-lhe filósofa.

Um dia Ela explicou-lhe uma teoria, que tinha como certa. O cabelo encontrado por Ele no sparguetti era alourado e não havia nenhuma empregada no restaurante com cabelo daquela cor. A cozinheira que cozeu o sparguetti garantiu-lhe que ela mesma tinha aberto naquele momento a embalagem. Não sendo de admitir que o cabelo já viesse com a massa, como explicar o seu aparecimento? Ela então disse-lhe que estava convencida que tinha sido um deus que pusera um fio de cabelo da sua cabeleira, para eles assim se poderem conhecer. Teria sido, segundo Ela, ou Eros ou Cupido.

- Mas, de tão velhinhos que são, esses já devem estar carecas – respondeu, na altura Ele, a rir com a teoria d’Ela.

- Se assim não fosse não nos teríamos conhecido. Não sentiste, logo que me viste, uma atracção por mim? Eu senti por ti. Andava por ali um eflúvio no mínimo estranho. Era certamente dum desses deuses…

- O único eflúvio que senti – replicou Ele – foi o perfume que usavas na altura e a tua presença. E quanto a não nos conhecermos sem o tal cabelo, tenho a dizer-te que duvido muito disso. Eu tinha dado uma vista de olhos pela ementa, tinha admirado a decoração da sala e já tinha prometido a mim que voltaria, daí a dois ou três dias, para jantar. Então tu virias certamente falar comigo, para perguntar se estava tudo bem, para colher as minhas impressões do jantar, como tu fazes normalmente com os teus clientes. Ou não?

- Sabes que te digo? És um chato dum tipo muito pragmático, muito lógico, muito racional, que não dás hipótese a uma divagação poética. Continuo a teimar que era um cabelo de um deus.

Eram deste tipo as conversas que tinham quando evocavam o passado. E ainda agora, volvidos uns bons anos, esta conversa vinha à baila. E sempre aproveitavam para teimar um com o outro.

Ela a insistir que o fio que os unia não partia, porque era um fio de cabelo dum deus e Ele a dizer que não partia simplesmente porque eles eram sábios, o bastante, para saberem que não o deviam esticar muito.

 

 

 

 

 

publicado por Carapaucarapau às 10:41
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18 comentários:
De Rafeira a 1 de Julho de 2010 às 14:55
Já não entendo nada, era um cordel ou um cabelo? É preciso lata para entrar num restaurante, fora de horas, e pedir esparguete para um bife, acompanhamento fora do comum num sítio público, cá para mim, o nosso Carapau já tinha planeado tudo. Sabe-se lá onde ele foi desencantar o tal cabelo cuja cor era estranha naquele espaço ... mas o resultado foi excelente. Parabens Carapau. (Ainda dizem que as mulheres é que são rebuscadas)


De Carapau a 1 de Julho de 2010 às 18:23
Quer dizer, tu também não acreditas em deuses metidos em restaurantes?
E insinuas que foi o pobre coitado do cliente que já levava um cabelinho para armar o laço?
Afinal ora vejam só com quem eu ando metido!
:-)


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