O músico cego e a mulher
Sempre tivera problemas com a visão. Com a idade esses problemas foram aumentando e um dia cegou de vez. “Irreversível”, já o tinham avisado os médicos. Foi-se preparando para aceitar a cegueira, de maneira que, quando ela chegou, não o apanhou desprevenido.
Contou para isso com a ajuda preciosa da mulher que estava sempre a seu lado para o ajudar em tudo. Praticamente eram um só. Quem os visse na rua, achava aquele par um pouco estranho, sempre muito agarrados, sempre com o passo certo, um passo miúdo e rápido. Ela era os olhos dele.
Nas aulas que ele dava – aulas de música – ela estava sempre por perto para atender a qualquer coisa que fosse preciso. “É a minha secretária” dizia ele sempre risonho.
Um dia ela começou a queixar-se “dumas dores esquisitas”. Foram ao médico. Receitou uns medicamentos para as dores, mandou fazer exames radiológicos e análises. Quando voltaram ele aconselhou um outro médico da especialidade. Que era mais seguro ter um diagnóstico preciso. Passaram mais uns dias e foram, sempre os dois, a essa consulta. O médico examinou-a, viu os exames, encaminhou-a para ir fazer mais uns testes e quando ele a queria acompanhar o médico reteve-o. “O senhor fica aqui a conversar comigo, enquanto a sua esposa faz o exame. Ela volta já”.
Foi então que o médico que lhe disse, a ele, que o caso era irremediável. Aquele exame era só um pretexto para ficarem a sós. O cancro estava de tal maneira adiantado que não havia nada a fazer. Claro que fariam uns tratamentos, uma quimioterapia, mas pouco ia adiantar e ela ia sofrer bastante. Dizia-lhe aquilo tudo, e assim francamente, porque percebia a dependência dele em relação a ela e ele teria que ir pensando no futuro.
Ele gaguejou umas perguntas, uns pedidos de esclarecimento, até ficar bem informado.
Pouco depois voltaram para casa, e pelo caminho, ele contou a ela que o médico lhe tinha dito que não era nada de grave e nem seria preciso fazer qualquer operação. Bastava alguma medicação.
Como habitualmente jantaram ao som das notícias, a televisão ligada, de vez em quando ela esclarecia-o de qualquer pormenor.
À hora habitual deitaram-se. Quando ela adormeceu, ele levantou-se com cuidado, agarrou na almofada e sufocou-a até à morte. Depois vestiu-se, abriu uma janela e fez um voo picado a partir do 6º andar, onde viviam.
De Calendas a 19 de Maio de 2010 às 20:20
É verdade?
De Carapau a 20 de Maio de 2010 às 14:59
Se relatei algum caso que conheci, não. Mas deve haver por esse mundo fora casos semelhantes com cegos ou não cegos.
Como apareceu este post?
Aqui, nas minhas bandas, cruzo-me quase diariamente com 3 ou casos de invisuais. Entre eles há um casal, em que o senhor é cego e a mulher não. Comporta-se, na rua, exactamente como descrevi. Ele (que é prof. de música) desloca-se com uma confiança total e sem bengala, só arrimado a ela. E eu pus-me a pensar se um dia...
Por que dá a ideia (não conheço pessoalmente o casal) de que ele depende totalmente dela ( e até posso estar enganado), daí a minha ficção.
Já em relação aos outros invisuais com quem me cruzo dão-me a ideia que andam a aprender a viver sózinhos. De facto utilizam o metro como transporte e deslocam-se só com o auxilio duma bengala. Já os tenho visto completamente desorientados (e tenho-os ajudado), mas tenho verificado uma certa evolução na maneira como se deslocam. Aliás, um deles é uma senhora ainda jovem (30 e tais) que agora tem um cão-guia e acho-a muito mais confiante, o que não é para admirar.
A cegueira é das coisas que mais me incomoda. Por isso não deve ter ficado de fora este meu estado de espírito , quando escrevi o post, que, repito é ficção
apioada na bengala da realidade.
Talvez ficcione, em sentido oposto, o caso da senhora. Conforme a evolução dela e o meu estado de espírito.
Ufa!!!
Foi uma explicação maior que o post.
Mas as minhas ilustres visitantes, merecem.
:-)
De Calendas a 22 de Maio de 2010 às 15:03
Tive, no ciclo, um professor de música que era cego. Era casado com uma senhora também invisual. Tinham um filho sem quaisquer problemas que era o seu apoio.
De maria teresa a 19 de Maio de 2010 às 20:22
Não sou capaz de comentar (já comentei)
Olá. Estava a ler este teu post com muita atenção quando, de repente, me veio à mente algo parecido.
Não tinha a ver com cegueira, mas com um casal de idosos, aqui de Braga, que se davam muito bem- Não tinham filhos.
Ela adoeceu, foi hospitalizada e faleceu. Passados 2 dias, ele, matou-se.
Foi contado por uma colega minha , de quem era vizinha.

De Carapau a 21 de Maio de 2010 às 22:13
Quando uma pessoa se torna muito dependente de outra (qualquer que seja o tipo dessa dependência) e uma delas desaparece, tudo pode acontecer. É dos livros e da experiência da vida.
Bjo.
Já li e reli e depois do que disseste na tua última resposta nada mais tenho a acrescentar.
( Demasiado pungente, realista e incrivelmente bem escrito.)
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