Maria de Lurdes
Quando andava na 4ª classe da Instrução Primária (como se dizia na altura), a Maria de Lurdes tinha por companheiros uma outra rapariga e três rapazes. Os cinco tinham aulas em conjunto, lá na escola da pequena aldeia onde viviam.
Um dia, perto do fim do ano escolar, estavam os alunos da 3ª classe a fazer umas provas para preparar o exame, a professora pôs os cinco a estudarem numa outra sala, dizendo-lhes que no fim viria fazer-lhes perguntas sobre a matéria. A matéria a estudar era “países europeus e as respectivas capitais”.
À frente deles, na parede, o mapa da Europa.
“A capital da Áustria é Viena, a capital da Grécia é Atenas…” e por aí fora seguia a cantilena. Depois fechavam os olhos e, de frente para o mapa, tentavam acertar na localização do país e da capital que um deles dizia.
E como,
“As almas das crianças são como pérolas de leite
Caídas em túmulos virginais.
Tudo quanto ali se grava, tudo quanto ali se escreve,
Cristaliza em seguida e não se apaga mais”, (*)
passado algum tempo já sabiam tudo, da frente para trás e de trás para a frente. E ainda faltava tanto tempo para a professora vir interrogá-los…
Inventaram jogos, brincadeiras, passatempos.
Às tantas, nunca ninguém soube a razão, se é que houve uma razão, um dos rapazes espetou o aparo da caneta no pescoço da Maria de Lurdes.
A miúda desata num berreiro tremendo, a chorar convulsivamente, o que apanhou todos de surpresa, até o autor do “atentado”.
Durante largos minutos ela chorou convulsivamente, as lágrimas a caírem-lhe pela cara abaixo e sem responder às perguntas dos colegas sobre o que tinha acontecido.
Passado algum tempo ouviram-se os passos da professora a subir a escada que conduzia à sala onde se encontravam os cinco.
Ainda a Maria de Lurdes soluçava.
A professora sentou-se à secretária e mandou os alunos alinharem em frente dela, para o interrogatório sobre as capitais europeias.
Foi nessa altura que reparou na cara da Maria de Lurdes, ainda a soluçar e com os evidentes sinais de choro estampados no rosto.
- Que tens? Que aconteceu?
Durante um ou dois segundos o mundo deixou de girar para o autor da “proeza”. Só ele e a Maria de Lurdes sabiam o que tinha acontecido.
Ele fechou os olhos e esperou pela declaração da colega, a que se seguiria o julgamento e a óbvia sentença.
Ela então respondeu à professora:
- Fui eu que bati com o joelho na carteira, doeu-me muito e até chorei.
- Ora! Isso não é nada. Dói muito na altura mas depois passa. Daqui a pouco já nem sentes nada. Vamos lá a saber o que aprenderam.
Ele nem queria acreditar no que se estava a passar. Tinha passado do azul do medo ao amarelo da vergonha. Então a Maria de Lurdes não dissera que fora ele que a picara? Ao mesmo tempo sentiu um alívio enorme, afinal não lhe ia acontecer nada. E tudo porque ela mentira, para ele não ser castigado!
Lá responderam às perguntas. Todos sabiam tudo sobre as capitais europeias. A professora mandou-os embora. Saíram. Cá fora o culpado nem disse bom dia nem boa tarde. Contra o costume foi sozinho, em passo apressado, para casa. Nem um agradecimento à colega, nem um pedido de desculpas. Nem nesse dia, nem nos seguintes, em que ainda tiveram aulas de preparação para o exame, que era daí a pouco tempo. Ele nunca mais falou para ela, nunca mais olhou para ela.
Depois de terem terminado a instrução primária com o respectivo exame, várias vezes ele a viu, pois estudavam ambos na cidade próxima. Quando a descobria ao longe ele mudava de passeio e olhava para o outro lado. Nunca mais lhe falou.
Depois simplesmente ele perdeu-a de vista e nunca mais soube nada dela, nem da família, que entretanto deixou de viver na aldeia.
Mas aquela atitude digna, de uma miúda que o salvou de um pesado castigo, face à atitude dele de, cobardemente, se calar e de nunca lhe ter pedido desculpa e de nunca lhe ter agradecido, ele não a esqueceu. Como também nunca mais esqueceu uma coisa que não vem em nenhum livro de Geografia: a capital das capitais europeias chama-se Maria de Lurdes.
E isso, só ele sabe.
(*) Os versos foram citados de cor e podem não ser precisamente assim. Também me esqueci de quem é o autor. Suponho que são dum poema de Guerra Junqueiro, mas não o afirmo.