Quarta-feira, 12 de Maio de 2010

Gente (VI)

Maria de Lurdes

 

Quando andava na 4ª classe da Instrução Primária (como se dizia na altura), a Maria de Lurdes tinha por companheiros uma outra rapariga e três rapazes. Os cinco tinham aulas em conjunto, lá na escola da pequena aldeia onde viviam.

Um dia, perto do fim do ano escolar, estavam os alunos da 3ª classe a fazer umas provas para preparar o exame, a professora pôs os cinco a estudarem numa outra sala, dizendo-lhes que no fim viria fazer-lhes perguntas sobre a matéria. A matéria a estudar era “países europeus e as respectivas capitais”.

 À frente deles, na parede, o mapa da Europa.

“A capital da Áustria é Viena, a capital da Grécia é Atenas…” e por aí fora seguia a cantilena. Depois fechavam os olhos e, de frente para o mapa, tentavam acertar na localização do país e da capital que um deles dizia.

E como,

 

“As almas das crianças são como pérolas de leite

Caídas em túmulos virginais.

Tudo quanto ali se grava, tudo quanto ali se escreve,

Cristaliza em seguida e não se apaga mais”, (*)

 

passado algum tempo já sabiam tudo, da frente para trás e de trás para a frente. E ainda faltava tanto tempo para a professora vir interrogá-los…

Inventaram jogos, brincadeiras, passatempos.

Às tantas, nunca ninguém soube a razão, se é que houve uma razão, um dos rapazes espetou o aparo da caneta no pescoço da Maria de Lurdes.

A miúda desata num berreiro tremendo, a chorar convulsivamente, o que apanhou todos de surpresa, até o autor do “atentado”.

Durante largos minutos ela chorou convulsivamente, as lágrimas a caírem-lhe pela cara abaixo e sem responder às perguntas dos colegas sobre o que tinha acontecido.

Passado algum tempo ouviram-se os passos da professora a subir a escada que conduzia à sala onde se encontravam os cinco.

Ainda a Maria de Lurdes soluçava.

A professora sentou-se à secretária e mandou os alunos alinharem em frente dela, para o interrogatório sobre as capitais europeias.

Foi nessa altura que reparou na cara da Maria de Lurdes, ainda a soluçar e com os evidentes sinais de choro estampados no rosto.

- Que tens? Que aconteceu?

Durante um ou dois segundos o mundo deixou de girar para o autor da “proeza”. Só ele e a Maria de Lurdes sabiam o que tinha acontecido.

Ele fechou os olhos e esperou pela declaração da colega, a que se seguiria o julgamento e a óbvia sentença.

Ela então respondeu à professora:

- Fui eu que bati com o joelho na carteira, doeu-me muito e até chorei.

- Ora! Isso não é nada. Dói muito na altura mas depois passa. Daqui a pouco já nem sentes nada. Vamos lá a saber o que aprenderam.

Ele nem queria acreditar no que se estava a passar. Tinha passado do azul do medo ao amarelo da vergonha. Então a Maria de Lurdes não dissera que fora ele que a picara? Ao mesmo tempo sentiu um alívio enorme, afinal não lhe ia acontecer nada. E tudo porque ela mentira, para ele não ser castigado!

Lá responderam às perguntas. Todos sabiam tudo sobre as capitais europeias. A professora mandou-os embora. Saíram. Cá fora o culpado nem disse bom dia nem boa tarde. Contra o costume foi sozinho, em passo apressado, para casa. Nem um agradecimento à colega, nem um pedido de desculpas. Nem nesse dia, nem nos seguintes, em que ainda tiveram aulas de preparação para o exame, que era daí a pouco tempo. Ele nunca mais falou para ela, nunca mais olhou para ela.

Depois de terem terminado a instrução primária com o respectivo exame, várias vezes ele a viu, pois estudavam ambos na cidade próxima. Quando a descobria ao longe ele mudava de passeio e olhava para o outro lado. Nunca mais lhe falou.

Depois simplesmente ele perdeu-a de vista e nunca mais soube nada dela, nem da família, que entretanto deixou de viver na aldeia.

Mas aquela atitude digna, de uma miúda que o salvou de um pesado castigo, face à atitude dele de, cobardemente, se calar e de nunca lhe ter pedido desculpa e de nunca lhe ter agradecido, ele não a esqueceu. Como também nunca mais esqueceu uma coisa que não vem em nenhum livro de Geografia: a capital das capitais europeias chama-se Maria de Lurdes.

E isso, só ele sabe.

 

(*) Os versos foram citados de cor e podem não ser precisamente assim. Também me esqueci de quem é o autor. Suponho que são dum poema de Guerra Junqueiro, mas não o afirmo.

 

 

publicado por Carapaucarapau às 23:07
link | favorito
De Red Maria a 14 de Maio de 2010 às 17:32
Lá está, tudo muito lindo mas os rapazes continuam de passo apressado, não agradecem, não falam, vão à sua vidinha e adianta de muito às Marias que eles pensem que elas são as Rainhas da Rua delas, da Avenida ou do País inteiro arredores e sabe-se lá que mais e - que só eles saibam!



De Carapau a 15 de Maio de 2010 às 15:04
"Não há rapazes maus"! Há é rapazes que, em certas alturas da vida, ainda não cresceram o suficiente para entenderem certas coisas. E quem diz rapazes diz raparigas. É tudo farinha do mesmo saco, não me venham dizer que há diferenças...
Para além das óbvias.


Comentar:
De
  (moderado)
Nome

Url

Email

Guardar Dados?

Este Blog tem comentários moderados

(moderado)
Ainda não tem um Blog no SAPO? Crie já um. É grátis.

Comentário

Máximo de 4300 caracteres



Copiar caracteres

 



.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Dezembro 2019

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6
7

8
9
10
11
12
13
14

15
16
17
18
19
20
21

22
23
24
25
26
28

29
30
31


.posts recentes

. E vai (mais) um...

. Pó e teias de aranha

. Aleluia!

. Dignidade

. Balanço

. Outros Natais...

. A dúvida

. Promessas...

. Pulítica

. O não post...

.arquivos

. Dezembro 2019

. Novembro 2018

. Dezembro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

blogs SAPO

.subscrever feeds

Em destaque no SAPO Blogs
pub