Até parece um caso mal resolvido, ou qualquer peso na consciência, voltar ao tema do post anterior. Como já expliquei, nada disso acontece.
A D. Sónia estava enterrada num canto da memória, um daqueles cantos onde raramente se vai, tanta a poeira acumulada, que provoca alergias quando se lhe mexe, a não ser que qualquer causa exterior a faça ver à tona. Foi o que aconteceu. Tive necessidade de ir tratar dum assunto a uma agência de seguros que ficava a meia dúzia de metros da casa onde morava (ainda mora?) a senhora em questão e foi isso que trouxe o assunto à baila. Resolvi então fazer uma “pesquisa” para ver se podia tirar alguma conclusão sobre se sim ou não a D. Sónia ainda vive por lá, mas não conclui nada. Claro que não ia fazer perguntas à vizinhança, nem bater à porta tentando passar por vendedor duma empresa de telecomunicações ou coisa parecida. Limitei-me a olhar, na esperança que uma velhinha simpática aparecesse à janela para, a partir daí, fazer um romance de cordel. Mas nada aconteceu. O andar está em aparente bom estado, as janelas têm cortinas, uma persiana estava aberta a outra semi-aberta, na varanda notava-se que estavam umas peças de roupa a secar, mas não deu para perceber de que tipo eram, diria que panos de cozinha, se fosse obrigado a dizer alguma coisa.
A rua está com as árvores mais frondosas e a praceta igualmente. Desapareceu um elemento importante, que dantes havia no passeio fronteiro à casa em questão: uma cabine telefónica, daquelas antigas “à inglesa” que tanto jeito dava para um contacto de última hora. Lembremos que nessa época os telemóveis nem miragem eram ainda.
O prédio mantém os “óculos”, mas a cabine telefónica, como já disse, desapareceu. Especulei: seria que a D. Sónia tinha tanta influência que alguém nos TLP (empresa que então tratava das telecomunicações) mandara, a pedido dela, pôr ali aquela cabine estratégica? Teria a casa sido escolhida também por isso, caso a cabine fosse anterior à sua (da senhora) instalação naquela morada, ou tudo não passou duma coincidência, que por acaso dava muito jeito? Estou a pensar nos amigos da D. Sónia, para uma derradeira confirmação de “caminho livre” (talvez devesse dizer “caminha livre”), assim como no próprio companheiro, já apresentado, numa ou outra noite em que, vagueando pela praceta à espera que o óculo se apagasse, acontecesse o caso, sempre de admitir dada a hipótese de esquecimento, de o caminho (caminha) já estar desimpedido e a luz manter-se teimosamente acesa. Quem nunca se esqueceu de uma luz acesa atire a primeira pedra à D. Sónia.
E já que falei no companheiro dela, também agora me intriga o que faria ou não faria, que papel desempenhava ele em todo o “processo”. Tanto quanto me lembro ele seria um pouco mais velho que a D. Sónia, mas não muito mais. Nunca me “interessei” por ele, mas agora, relembrando e pensando, acho que tinha um papel importante. Teria sido todo o “plano de vida” de ambos projectado por ele, a partir das “potencialidades” que descobriu na companheira, ou só entrou na vida dela, quando ela percebeu que precisava de alguém que lhe desse uma certa segurança física e lhe trouxesse uma respeitabilidade que, vivendo sozinha, não conseguiria, sobretudo em termos de vizinhança, sempre ávida de perceber “certos casos” e em denunciá-los, estragando o negócio?
Nem de longe nem de perto o aspecto dele era o que estamos habituados a ver hoje nos que exercem o papel de seguranças, frequentadores de ginásio e cabelo rapado à máquina zero, “marca do fabricante”. Nada disso. Todo ele transpirava seriedade, cortesia, aprumo discreto. Estou a imaginar alguns encontros dele com o guarda-nocturno, “boa noite senhor doutor, então mais um passeiozinho por via de fazer a digestão?”, “é verdade senhor guarda, esta vesícula é preguiçosa, dá cabo de mim…”, pois é de admitir que se tenham encontrado muitas vezes. E estou em crer que o “Sereno” era bem recompensado pelo Senhor, se não era a D. Sónia, ela mesma, que tratava do assunto.
A verdade, como acontece muitas vezes, não virá ao de cima nesta recapitulação da vida do casal. A D. Sónia tinha ar de quem não precisava de ninguém para singrar na vida e explorar sozinha a empresa de prestação de serviços, e nesse caso o Senhor foi uma aquisição para a Empresa. Mas como podemos nós ter a certeza, quando o mundo está cheio de exemplos de coisas que são exactamente o contrário do que pensamos? Que o negócio era rendoso, todos os indicadores o confirmavam. “Economistas” de diversos quadrantes chegavam a essa conclusão ao manusearem números e ao traçarem gráficos. Quando e como a empresa acabou não sei. Mas se todas as empresas têm um fim, esta, unipessoal, acaba no instante em que a pessoa resolve acabar, sem problemas burocráticos a solucionar e a atrasar o encerramento. Assim sendo, agora calmamente a analisar o assunto, direi que muito provavelmente a senhora mudou de poiso, depois do ter arrumado as chuteiras (e cá está a linguagem futebolística a interferir
num trabalho que se julga técnico e mais da área económica do que desportiva).
A empresa deve ter encerrado quando a D. Sónia quis, ou porque os objectivos já tinham sido alcançados, ou então por definhamento do negócio, perda de clientela, digo de amigos visitantes, seja por mudança de ramo deles, seja por aparecimento de outras “marcas” no mercado. A vida é assim mesmo, feita de mudança, de modas, de entradas em cena e consequentes saídas.
Quando comecei este post, era para me interrogar sobre o que teria levado a D. Sónia a levar aquela vida. Mas perdi-me em divagações e só agora vou encarar esse assunto. Várias hipóteses se podem pôr. Assim:
1- D. Sónia tinha uma anterior vida estabilizada e de bom nível e de um momento para o outro desmoronou-se?
2- D. Sónia tinha 1 ou 2 filhos (internados num bom colégio) a quem queria dar uma boa educação para terem, eles, um futuro melhor?
3- D. Sónia era sozinha, tinha uma vida sofrível e difícil e achou que desta maneira “resolvia” a sua vida e o seu futuro, e neste caso foi uma tomada consciente de rumo?
4- O companheiro “empurrou-a/obrigou-a a essa vida, ou é ela que o arranja já depois de “estabelecida”?
Muitas mais hipóteses se poderiam considerar, mas destas quatro, pelo menos uma não andará longe da verdade.
Quando a “conheci” não sei há quantos anos a “empresa” já funcionava. E não sei quantos mais funcionou.
Admitamos a 3ª hipótese para especular sobre ela. Num comentário deixado no post anterior eu disse que se calculava o rendimento da senhora entre 20 a 30 vezes ao de um emprego “normal” na época. Quer dizer que se a senhora desenvolveu aquela actividade por 10 anos, terá amealhado um valor que, em condições “normais”, lhe levaria 300 anos a conseguir. Partindo do princípio que ela viveu mais 50 anos a partir da data em que deixou a actividade, e não se estabeleceu noutro ramo (uma loja, uma pensão, ou qualquer outro negócio) ela teria um rendimento 6 vezes superior ao de um emprego dito normal, o que não era nada mau.
Nestas contas não se consideraram aplicações rendosas do capital que ia amealhando, mas também não a inflação, desvalorizações da moeda, etc.
Teria a D. Sónia traçado a sua vida visando estes objectivos?
Só posso deixar interrogações.
Mas sei, muita gente sabe que há mulheres que traçaram este rumo de vida.
Uma coisa não pretendi: fazer um juízo moral da situação. Tentei contar e analisar um caso, que é relativamente vulgar, em tom ligeiro. Nada mais.
À margem do assunto, ou melhor, para remate do assunto: por que é tão mal vista a vida duma mulher que aluga o corpo (em geral parte do corpo), sendo considerada uma indignidade, e é considerado normal e até dignificante que todos nós aluguemos o nosso, seja num trabalho físico, seja intelectual? Onde está a “grande diferença”? Olho em volta e não a vejo.