Senhora D. Sónia
Quando a conheci andaria eu pelos 27/28 anos e ela devia estar a chegar aos 40. Era uma senhora fisicamente “muito interessante” e andava sempre irrepreensivelmente vestida, penteada e maquilhada. Quando alguém se cruzava com ela não passava despercebida e inevitavelmente era “medida” de alto abaixo com o olhar, quer pelos homens quer pelas mulheres. Reparei nisso algumas vezes. Notava-se que ela percebia essa atracção que exercia sobre as outras pessoas, mas tinha em público um comportamento discreto e irrepreensível, sempre de braço dado com o “amantíssimo esposo”.
Aqui começava a primeira dúvida do seu, mais ou menos restrito e seleccionado, círculo de visitas. Havia quem dissesse que o senhor com quem aparecia em público era marido, havia quem se ficasse por companheiro, outros por amante e havia os mais ousados que se lhe referiam como guarda-costas ou simplesmente chulo. Fosse o que fosse, também ele tinha um comportamento dum Senhor, sempre bem arranjado e aprumado.
Eu conhecia os dois, sem os conhecer. Conhecia-os de vista, encontrei-os muitas vezes, apreciei-lhe o físico (à Senhora D. Sónia, é bom de entender), mas não era do seu círculo de visitas.
A Senhora em questão, é altura de o dizer, era Puta. Com P maiúsculo, diga-se desde já atendendo às considerações atrás feitas e atendendo ao seu porte, mas também à classe com que recebia os seus convivas, não me atrevo a dizer clientes, que isso é de puta de baixa extracção.
Como sei tudo isto e mais o que adiante direi, interrogar-se-á quem porventura estiver a ler isto e seja um espírito dado à curiosidade e à desconfiança. Sim, por que saber assim coisas sem ter ido ter ao “âmago” da questão, pode levantar dúvidas e suspeições e pensar que afinal o relator é um tratante e tudo isto é inventado.
Pois bem, sei tudo por interpostas pessoas, minhas amigas, que além de interpostas eram elas postas frente à realidade que era a D. Sónia, deixando eu agora cair o “Senhora” só para abreviar e aligeirar o tratamento. Aliás na intimidade era Sónia para aqui, Sónia para ali, ela dispensava outro tratamento, o que se compreende. Não sei, suponho que nenhuma das suas visitas sabia, se Sónia era mesmo o seu nome de baptismo, se era tão só nome de guerra. Fica só este registo aqui. Por Sónia era conhecida.
Vivia num andar numa das ruas mais conhecidas da zona que então era conhecida por “Avenidas Novas”, em Lisboa, rua larga, bem delineada, com árvores. Em frente ao prédio onde morava havia uma praceta recatada com um pequeno mas aprazível jardim.
Eu passava quase diariamente por essa rua, pois era um dos acessos a uma outra rua onde então morava. A razão destes pormenores está no facto de eu encontrar muitas vezes, a dar voltas à tal praceta com jardim, o acima apresentado Senhor “amantíssimo esposo” da Senhora e que afinal podia ser muitas outras coisas. Mas morava com ela, isso era certo. Agora um pormenor arquitectónico. As casas de banho do prédio tinham janelas redondas, daí o serem conhecidas por “óculos”. Isto é só uma curiosidade, mas dava muito jeito ser assim, pois não se confundiam com as outras janelas e deste modo evitavam-se enganos. E o “esquema” da Senhora era o seguinte: óculo iluminado significava D. Sónia ocupada a receber um conviva e, desde logo, não valia a pena nenhuma outra tentativa de contacto e o tal Senhor também não podia subir para casa. E quando assim acontecia (e para bem dos rendimentos do casal, acontecia sempre, ou quase sempre) o “nosso homem”, salvo seja, dava voltas à praceta. Era então que eu, ao passar na rua, já um pouco tarde por vir por exemplo do cinema, o via naquela via-sacra, a fazer tempo para que o óculo se apagasse, sinal de que tinham terminado as tarefas diárias da Excelentíssima. Em geral não passava da 1 da manhã. D. Sónia era rigorosa no horário de trabalho que só começava pelas 4 da tarde até à 1 da manhã, no máximo. Com intervalo de umas 2 horas para jantar, que aquilo era casa com ordem.
Para além da “conversa” que se supõe que tivesse com os “convidados”, havia sempre um cálice de Porto ou um copo de whisky à disposição, para adaptação ao ambiente (adaptação ao relvado dir-se-ia hoje em termos futebolísticos). Era assim que D. Sónia trabalhava, perdão, recebia (para além de receber de outra maneira, mas isso já são assuntos de contabilidade que não fazem parte desta descrição).
Segundo as tais testemunhas oculares que me relatavam o que “lá” se passava, convém dizer que D. Sónia se apresentava sempre bem vestida e arranjada e não de roupão para “adiantar serviço” como alguém poderá estar a imaginar. O despir já fazia parte do menu, assim como as bebidas.
D. Sónia não recebia aos fins-de-semana e eu encontrei o casal muitas vezes em cinemas, teatros e outros acontecimentos mais ou menos culturais/mundanos. Sempre irrepreensivelmente vestidos e de braço dado.
Claro que muitas vezes havia nesses acontecimentos alguns dos seus convivas. Nunca notei um olhar de soslaio, um sorriso disfarçado, um qualquer trejeito. Sempre uma irrepreensível conduta em público. Convém dizer que cada novo conviva tinha de ter um “padrinho” para ser aceite e esse padrinho seria um visitante habitual a quem D. Sónia reconhecia o direito para lhe “recomendar” alguém. Depois pelo telefone era marcada a “recepção” e a respectiva hora.
Tive direito a conhecer esse número de telefone que era de acesso restrito, cheguei a ter padrinho, mas nunca fui baptizado. E só por um motivo o não fui. Não pela marca do whisky ou do Porto, mas porque havia 3 ou 4 amigos que “frequentavam” os salões de D. Sónia, o que para mim já me parecia mais uma casa de família do que outra coisa. E há coisas que não ficam bem fazerem-se com a família, sobretudo quando à saída há uma salva de prata à espera de um qualquer “óbolo para os pobrezinhos”…
Óbolo esse que estava estipulado nos regulamentos da casa, obviamente.
Esta a história breve da Senhora D. Sónia que me propus contar.
Mas não resisto a acrescentar uma cena em que a Senhora é o motivo da conversa, mas não entra na acção.
Uma tarde estava eu a almoçar com um colega de trabalho, muito mais velho do que eu e até do que da D.Sónia e que era um boémio da velha guarda que conhecia este mundo e o outro, quando entra nesse restaurante a Senhora mai-lo o seu Senhor. Sentaram-se e prepararam-se para almoçar também.
Foi então que os olhos do meu colega brilharam e me disse mais ou menos isto:
-“Tenho encontrado aquele casal muitas vezes sobretudo nos cinemas e nos teatros. Nunca falham as estreias das revistas. Ela tem uma classe extraordinária e são um casal perfeito. Mas não sei quem são e nenhum dos meus amigos sabe. Ele deve ser administrador ou dono de alguma empresa. Devem ter muita “massa”.Que acha dela?”
-“Acho bem, é uma brasa e tem muita classe. Eu também os tenho visto por aí e tenho uns amigos que os conhecem. Ele é de facto um administrador” – e disse isto tudo com o ar mais sério.
-“Ah! Logo vi”.
E mais não disse. Fiquei a gozar, por dentro, com o facto de eu saber tudo dela e o engatatão mor do reino e o boémio das mil namoradas, nem de longe imaginar quem estava ali.
Acabei por lhe recordar esta cena bastantes anos depois, quando já ele estava “retirado” e suponho que a D. Sónia também e contei-lhe a história da Senhora.
Não queria acreditar!