Vou poucas vezes à Baixa de Lisboa, entendendo como Baixa a zona do Rossio, Chiado, Terreiro do Paço e ruas das redondezas.
Há dias tive de ir tratar dum assunto e depois fiquei a vaguear um pouco por ali.
A Rua do Amparo é uma rua com meia dúzia de metros de comprimento, pois liga a Praça D. Pedro IV, nome oficial do conhecido Rossio, à Praça de D. João I (a velha Praça da Figueira). Paralela a essa, fica a Rua da Betesga que também une, mais a sul, as duas praças.
Nessa rua do Amparo, só para peões, estavam nesse dia instalados dois ou três engraxadores e um outro tipo com uma banca montada para plastificar documentos. São aliás figuras habituais daquele sítio.
Olhei para os meus sapatos, que já não viam graxa há muito, e resolvi sentar-me num dos bancos. O engraxador teria uns sessenta anos mal conservados, a barba por fazer, um grande bigode e um gorro enfiado a tapar as orelhas. Estava bastante frio e a rua era um verdadeiro canal por onde corria um vento de cortar. Sem conversa de parte a parte, o homem começou o seu trabalho e eu fiquei a observar o que se passava à volta. O tipo das plastificações era um fala-barato que se metia com toda a gente que “estacionava” ali pela rua, sempre a falar muito alto e com piadas a torto e a direito.
Um cauteleiro, cego, andava de um lado para o outro, meia dúzia de passos para a frente, outra meia dúzia para trás, a apregoar o jogo.
- Olha o dezassete quatro sessenta e nove, olha a grande!
O “plastificador” metia-se com ele:
- Ó Chico senta-te aqui no meu colo para aquecermos os dois! Agora até já podemos casar! Se tiveres umas massas…
O Chico cauteleiro esboçava um sorriso, e continuava:
-Olha o sessenta e nove! Comprem, não tenham vergonha! É só um número…
- Ó Chico hoje tás feito. Com esse número não fazes negócio! Tás pior que a águia do Benfica. Parece mais uma coruja de cauda branca…- gritou ele, e eu fiquei sem perceber a piada toda.
O outro resmungou qualquer coisa sobre as garras gastas do leão, e continuou com a sua lengalenga:
- Olha o sessenta e nove! Não tenham vergonha de comprar! Isto é só um número e pode ser a grande!
O engraxador continuava o seu trabalho, ainda não tinha aberto a boca, eu tão pouco, e às tantas aparece, vinda do Rossio, uma senhora de idade, que chega junto dele e lhe pergunta bruscamente:
- Ouça cá! Foi você que mandou vir este vento?
O engraxador abriu a boca pela primeira vez:
- Fui sim senhora.
Então a senhora fez-lhe uma festa na cara, enquanto dizia “Ah seu maroto” e continuou o seu caminho.
Eu observei a cena, o engraxador olhou para mim, fez um trejeito com o bigode naquilo que seria um sorriso, e disse:
- Tem noventa e tal anos e sempre que passa por aqui tem de dizer qualquer coisa.
- Sente necessidade de conversar, certamente - respondi eu a falar também pela primeira vez.
O homem olhou de novo para mim, abriu a boca como quem ia a falar, mas arrependeu-se, acabou por encolher os ombros e dar lustro ao sapato.
Entretanto acabou o primeiro sapato, deu-me um toque nele para eu mudar de pé, e nesta altura o cauteleiro aproximou-se de mim e perguntou-me:
- Não quer a grande?
- Nem a pequena – respondi-lhe a sorrir, esquecido de que ele não me via. Logo de seguida, não fosse ele ofender-se com a minha resposta, perguntei-lhe se conhecia essa história do cauteleiro e da “grande”.
- Disse-me que não e então contei-lhe rapidamente a anedota.
“Num urinol público estavam lado a lado um cauteleiro, que segurava na mão esquerda a mola com as cautelas, e também desse mesmo lado, um outro utente. Às tantas o vizinho do cauteleiro começou a espreitar para o lado dele, muito curioso. A curiosidade que têm certos tipos que invejam sempre as “coisas” dos outros.
O cauteleiro julgou que ele estava a olhar para as cautelas e perguntou-lhe: “Oh amigo, quer a grande”?
E o outro, rápido, ansioso e curioso:
- Porquê? Tem outra ainda maior?”
O cauteleiro e o engraxador riram-se muito alto, o que intrigou o homem das plastificações que, por estar afastado não ouviu a anedota. Entretanto o meu prestador de serviços deu-me um toque no sapato a significar que tinha acabado o trabalho, levantei-me, paguei e ainda ouvi o cauteleiro dizer para o “plastificador”: “Querias saber? Qualquer dia conto-te… – e logo de seguida – olha o dezassete quatro sessenta e nove, quem quer a grande?”.
Este post fica a dever-se à colaboração do cauteleiro cego, do engraxador calado de farto bigode e do homem das plastificações, todos eles normalmente instalados na rua do Amparo, em Lisboa.
Teve ainda a participação especial de uma Senhora nonagenária, que colaborou com uma pergunta e um gesto carinhoso.
A todos eles o meu obrigado.