Há já bastante tempo que deixei de fumar. Mas em minha casa tenho sempre um maço de cigarros e alguns charutos.
Uma pequena história explica a razão desta minha mania.
Há um bom par de anos atrás, vivi, por motivos profissionais, algum tempo numa pequena vila. Além de pequena, era triste, monótona, fechada, quase sem existência. Para mim foi como uma penitenciária onde espiei um qualquer crime que não cometi. Não vivi lá muito tempo, portanto também não me cheguei a integrar numa coisa que também não vislumbrei: qualquer tipo de vida social. “Fui estando”.
Uma noite – noite de passagem de ano – depois dum jantar melhorado num dos poucos restaurantes que havia, e que nessa noite esteve aberto porque eu era cliente diário, sai a dar uma volta para ajudar a fazer a digestão, antes de regressar a casa. Tinha comido demais e bebido também mais que o meu normal. Uma espécie de vingança por ter de passar sozinho naquele local “fora do mundo” aquela noite. Estava uma noite fria e um nevoeiro cerrado envolvia a pequena povoação como uma capa negra. Só de muito perto se vislumbrava a claridade dos candeeiros da iluminação pública. Àquela hora já ninguém andava pelas ruas. Nem um único carro vi passar durante o tempo em que durou o meu passeio. Para não me perder, limitei-me a andar junto aos prédios do quarteirão onde morava. Tinha dado já duas voltas quando de repente junto a um dos candeeiros fui abordado por um homem que tinha aparecido não sei de onde. Na volta anterior, pelo menos, não estava lá.
Deu-me as boas noites, pediu desculpa pela abordagem e pediu-me um cigarro.
- Não tenho. Deixei de fumar já há algum tempo. – Respondi enquanto olhava para a cara do homem que estava mesmo junto a mim.
Havia qualquer coisa de estranho, e que não oferecia confiança, na cara do sujeito.
-Raios… - resmungou ele entre dentes – como é que eu vou agora arranjar tabaco nesta terra? Tudo fechado… com este nevoeiro não passa ninguém pelas ruas…
Eu não deixava de o fitar com algum receio e lembrei-me de um conto do Miguel Torga sobre uma situação semelhante: a de um homem que sem tabaco, desesperado, pede um cigarro a um outro homem que por acaso passou por ele, lá no meio da serra. O segundo homem ia a fumar, portanto tinha tabaco e deu-lhe um cigarro. No fim de puxar umas fumaças o primeiro homem confessou que se ele lhe tivesse negado um cigarro o tinha matado.
Esta lembrança, o ar desesperado do homem e o facto de naquele momento “estarmos sós no mundo” fez-me arriscar um convite:
- Tenho em casa alguns cigarros, se me quiser acompanhar, dou-lhos. Moro aqui perto.
- Fico-lhe muito agradecido.
Andamos os poucos metros que me separavam do prédio onde morava e quando entrei em casa convidei-o também a entrar.
Procurei um maço meio cheio que, por esquecimento, um amigo aí tinha deixado, e entreguei-o ao homem, que me pediu licença para fumar logo um deles.
Disse-lhe que sim, abri uma janela apesar do frio que entrava, e fiquei a observar a maneira “dramática” como o fumou: as duas ou três primeiras fumaças foram prolongadas, engolindo e retendo o fumo durante o máximo de tempo, consumindo logo quase metade do cigarro, depois passou a fumar mais calmamente.
- Não sei como lhe agradecer – disse o homem.
- Não precisa. Teve sorte em um amigo meu se ter esquecido desse tabaco aqui em casa, senão…
- Senão estava eu tramado.
- Está tudo fechado por aqui … – atirei eu sem saber que dizer mais.
- Tudo. E com este nevoeiro e na noite de hoje não anda ninguém na rua…
Bem…Obrigado mais uma vez …e boa noite. Vou andando.
Pensei em convidá-lo para uma bebida, estava agora seguro que nada de perigoso aconteceria, mas depois desisti da ideia.
- Gosta de charutos? – perguntei um pouco abruptamente.
- Creio que só fumei um ou dois em toda a vida, portanto não sou grande apreciador. Mas se esta noite tivesse um, já me teria dado por muito satisfeito.
- Tenho aqui meia dúzia deles que tenho recolhido nuns casamentos e outras festas, vou-lhos dar.
Ofereci-lhos, mas ele só aceitou um.
- Obrigado, mas fique com os outros. Levo só este para fumar amanhã que é dia de Ano Novo.
E dito isto, dirigiu-se para a porta de saída.
- Agora me lembrei – disse eu, talvez para não ficar calado. O posto da polícia está aberto com certeza. Aí teria encontrado algum guarda que certamente lhe teria dado um ou dois cigarros.
- Tem razão, mas nem pensei nisso… então obrigado uma vez mais e boa noite. Um bom ano para o senhor.
- Bom ano também para si.
E saiu.
Dois dias depois, ao fim da tarde quando regressei a casa, tinha na caixa do correio um maço de cigarros e uma folha de papel manuscrita.
Dizia mais ou menos assim:
“Este maço de cigarros não é para pagar aquele que o senhor me deu há dois dias. É sim para ficar com ele, para poder valer a alguém numa aflição, como aquela por que eu passei. Percebi que o senhor não é de cá, senão certamente não me teria convidado para ir a sua casa. Também aquele seu alvitre de eu ir à polícia pedir um cigarro, prova que o senhor não sabe quem eu sou. Se eu tivesse ido à polícia, era mais certo prenderem-me do que darem-me um cigarro. Mas isso é outra história.
Obrigado pelo que fez por mim. Se alguma vez precisar de alguma coisa da minha parte, basta dirigir-se ao homem que está na bomba de gasolina à saída da vila, e dizer que quer falar comigo, que ele lhe indicará o caminho. Basta dizer que o senhor é o dos cigarros.
Mais uma vez obrigado.”