Sábado, 5 de Dezembro de 2009

Gente (IV)

Desta limitada série "Gente que eu conheci", outra figura que não esqueço.

 

 

O Caldelas

 

   Ainda mesmo os mais madrugadores se viravam uma última vez na cama a dormir mais um migalho ou a saborear o quente do ninho, e já o Caldelas vinha de saco de serapilheira ao ombro, depois de recolher a caça, que os laços e outras armadilhas tinham angariado durante a noite.

   Já perto de casa fazia uma última tentativa com o furão, a ver se saca de um buraco um láparo que lhe escapa havia já uns dias. Operação rápida, pois convinha não se expor muito, já que o dia ia clareando. Depois entra na aldeia, com o furão escondido entre a camisa e a pele, um casaco surrado a compor a figura, o saco ao ombro, com os apetrechos proibidos e com as proteínas.

   Arruma o material, mete o bicho no esconderijo, pendura os dois coelhos laçados e esfola-os enquanto o diabo esfrega um olho. Enche as peles com palha e põe-as a secar. Depois leva os dois láparos, já amanhados, para casa e coloca-os num alguidar. O resto já será com a mulher, que aparece nesse momento ainda com os olhos meio fechados e a espreguiçar-se. Os filhos, duas elas e três eles, aparecem daí a pouco à procura de qualquer coisa que se mastigue.

    Este é o começo de um dia típico do Caldelas. Começo e fim, direi agora eu, pois  durante o resto do dia, ele já não fará grande coisa.

   A casa onde moram é pequena e modesta e tem, nas traseiras, um terreno também ele exíguo, que a família cultiva. Desse terreno vem os acompanhamentos, do saco do Caldelas vem o conduto. Quando os engodos não funcionam durante a noite, o homem dá a volta mais pelo largo e, desde que se ande com os olhos bem abertos, há sempre um pato a patinhar nalgum charco, uma galinha tresmalhada, ou em último recurso, e se for o tempo dela, umas peças de fruta prontas a serem ensacadas. Com o saco vazio só muito raramente volta para casa.

   O Caldelas é disto que gosta e é disto que sabe. Na época oficial de caça tira a sua licença, sai de espingarda ao ombro, e faz as suas caçadas na legalidade, descontando as pequenas ajudas que o furão lhe vai dando aqui e ali, que um homem também não consegue cumprir todas as leis ao mesmo tempo, tantas elas são.

   Uns copos e umas larachas nas tascas “en passant”, por vezes umas valentes bebedeiras, que a vida não é só trabalho, e aí está a receita de vida do Caldelas. Por falar em trabalho, nada de confusões, que é como quem diz, nada de cavar ou sachar o dia inteiro, de sol a sol, como quase toda a gente na aldeia faz. Isso é mesmo para os outros, mulher e filhos mais velhos incluídos. Ele tem mais que fazer, como já se disse. Lá de onde em onde uma mãozita rápida a encanar uns feijões ou a capar uns meloeiros na horta, no tempo deles, mas sem se prender muito. Com um “acabem lá o resto que tenho uns assuntos para tratar”, dito para a mulher e filhos, termina invariavelmente a sua rápida prestação.

   De bem com todos mas sem grandes conversas, o Caldelas passava mais ao lado das pessoas do que das coisas. A caça, a legal e a ilegal, absorviam-no todo o ano, juntando a essa actividade também a pesca. Não a pesca com linha e anzol, paciente e pouco produtiva, mas sim a pesca “industrial” e evidentemente proibida, com uns lanços apressados de tarrafa nas cascalheiras do rio, ou, mais raramente diga-se, uma bombita ou outra num pegão mais escondido, onde o peixe mais graúdo era garantido. Isto em golpes rápidos e só meia dúzia de vezes por ano, que o homem gostava mais de carne do que de peixe. Por esses tempos os rios ainda tinham peixes, os matos tinham caça e havia poucos caçadores e ainda menos pescadores. E como o Caldelas era profissional 365 dias por ano, sem direito a férias, e não havia mais nenhum como ele nas redondezas, bem se podia considerar o rei da floresta.

   Um dia o padre da freguesia, saído há pouco do seminário, mas tendo sabido, certamente em conversas mais com o Demo do que com Deus, das habilidades especiais do Caldelas para a caça, quis fazer uma caçada com ele. Contrariado o velho lá teve de aceitar uma tal companhia, mas como era evidente logo à partida, a coisa correu mal, o padre falhou um ou dois coelhos, o Caldelas que nem a Cristo perdoava, pegou-se com ele e a caçada acabou cedo.

   Um dia, era eu já mais crescido, numa conversa a sós, ele confessou-me que não era muito de latins e Padre Nossos. A mulher e as filhas lá iam à missa ao domingo, os filhos andaram na catequese, mas ele Caldelas, já nem era capaz de dizer a Salvé Rainha. No entanto, acrescentou, sempre se deu bem os padres. “Sabes – disse-me ele – dá sempre jeito. Se não fosse este bom relacionamento com o padre não tinha livrado os rapazes da tropa”. 

   Por isso é que aquele episódio de caça com o Padre não impediu que continuasse a dar-se bem com ele. Assim, de vez em quando, o Caldelas lá deixava em casa do padre um ou outro coelho ou perdiz. Mas caçadas juntos, nunca mais. Tudo, menos aturar pixotes na arte do tiro.

   Comecei a conhecer o Caldelas, era eu então um rapazinho de escola onde andava com um dos filhos dele. Ainda hoje quando os encontro, embora raramente pois andam todos pela estranja, falamos desses tempos e em geral sou eu que lhes lembro as histórias do pai. Eles acham piada, riem-se muito e acrescentam sempre mais um ou outro pormenor. E revejo neles, o mesmo sorriso irónico e o mesmo olho vivo do velho Caldelas.

 

publicado por Carapaucarapau às 12:49
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De maria teresa a 7 de Dezembro de 2009 às 23:43
Namorar com uma vieira? Que foleirice ! Ainda se namorasse cu uma lagosta...


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