A propósito da polémica que corre por toda a Europa sobre o preço do leite, das cotas (ou das quotas para quem gostar mais) leiteiras, dos subsídios à produção, etc, etc, lembrei-me duma conversa que em tempos tive com a conhecida vaca Belisária, na altura uma campeã produtora de leite. Encontrei-a numa Feira da Agricultura em Santarém, num ano em que eu tinha ido de férias Tejo acima, a convite duma Fataça, que morava para os lados da Azambuja. Não é que eu goste muito de água pouco salgada e morna, mas o convite não era para rejeitar, ainda que eu seja um pouco alérgico ao cheiro a petróleo de que a Fataça abusa, mesmo sendo um perfume com alta cotação no mercado. Estava eu a mostrar à Fataça o ubérrimo úbere (se me for permitido expressar-me deste modo) da Belisária, enquanto esta ruminava uma qualquer ideia à mistura com um resto de palha, quando ela, a vaca, resmungando ainda com a boca cheia, se dirigiu a mim:
- Tás admirado?
- E não é para estar?
- Não és o único. Toda a gente que por aqui passa abre a boca de espanto e diz umas gracinhas.
- De facto, não é para menos. Pareces mais uma fábrica de leite que uma vaca, com todo o respeito.
- Mas tenho orgulho no meu úbere. A malta que por aqui passa diz sempre “olha as mamas que a vaca tem”. Não foi por acaso que já fui premiada várias vezes.
- Os bois devem andar todos atrás de ti?
- Bois? Muuuu..ahahaha! És mesmo um atrasadinho. Isso já se não usa.
- Eu pelo menos não uso a não ser em bifes – disse eu à espera que a Belisária me perguntasse se um Carapau também come bife. – Mas já te deixaste de bois?
- Já me obrigaram a deixar. Há séculos! E que saudades desse tempo…
- Já não te aguentas nas canetas?
- Quais canetas, qual não aguento, estás a chamar-me velha?
- Nem pensar. Com esse ar luzidio, estás aí para durar e ruminar… mas como disseste que já não…
- Em que mundo vives tu, ó barbatanas?
- Isso é para mim ou aqui para a Fataça?
- Para ti meu azulinho; não é contigo que estou a falar? Há que tempos não sinto o peso dum boi.
- Mas então não é preciso de vez em quando “sentires esse peso” para poderes depois dar leite?
- Grande ignorante! Então nunca ouviste falar em inseminação artificial?
- Sei lá o que é isso – disse eu a disfarçar a minha pretensa ignorância, à espera de ouvir a explicação técnica da vaca. Nós por lá não usamos disso. É mesmo luta corpo contra corpo, disse eu a piscar o olho para a Belisária.
- Deve ser deve…sempre ouvi falar em ovas de peixe, mas está bem eu engulo essa.
- Mas então se já não vais ao boi, como é “isso” feito?
- Para já “nunca fui ao boi” como tu dizes. Sou vaca séria e não uma dessas. Quando estava na hora, traziam o boi até mim para conversarmos.
- Devia ser uma rica conversa – repliquei a puxar-lhe pela língua (“língua de vaca estufada com umas cenouras, rico petisco”, pensei eu mas não disse nada não fosse ofendê-la).
- À nossa maneira lá comunicávamos. Aliás achas que é precisa muita conversa? Creio que não tens experiência nenhuma sobre o assunto. Mas sempre te digo que quando me entusiasmava era cá cada berro muuuuuuuuuuuuuuuuuuu!!! que se ouvia na Golegã. Bons tempos. E então o Boiboizão era cá um pedaço, que não te digo nada. Pesado como um camião TIR, mas na altura tinha a leveza dum fardo de palha… lembrava-me lá eu do peso…
- Isso tresanda a saudades de outros tempos cara Belisária…
- Se te parece! Agora está tudo mudado.
- Mas então como é que as coisas funcionam agora. Ou tu já não…
- Já não? Sou a rainha das vacas, ou a vaca das rainhas, conforme aches melhor. Se ando de feira em feira é porquê?
- Mas se já não contactas os bois…
- Isso é verdade. Contactos directos, tipo luta corpo a corpo, acabou-se. Mas tenho contactos indirectos, ou se quiseres, por interpostas pessoas.
- Interpostas pessoas? Homens metidos contigo?
- Homens e não só. Às vezes até já mulheres…
- Grande vaca! Não te estava a ver nessas orgias…
- Quais orgias quais carapuças, estás a insultar-me.
- Não tive intenção. Cada qual faz o que quer, não tenho o direito de te julgar. Desculpa se te ofendi.
- Vê-se que és mesmo um molho de feno de ingenuidade e ignorância. O que eu quis dizer é que agora o “trabalho” (“qual trabalho? O Boiboizão adorava isso” – ruminou para dentro a vaca) é feito por uns tipos em geral vestidos de branco, que mais parecem uns anjolas que outra coisa.
- Amiga Belisária, creio que já te posso tratar assim, ainda não estou a ver como a coisa se processa. Então e esses anjolas usam algum banco, algum escadote, qualquer coisa assim…senão não estou a ver como…
- Por acaso usam banco sim senhor. Até diria que usam dois. Um aqui para se sentarem ao pé de mim e outro acho que o tem lá não sei onde, meio escondido e parece que é frio como o pólo norte.
- Que sabes tu do pólo norte?
- Devo saber tanto como tu, ora essa. Sei que é frio, com gelo por todo o lado.
- Mas voltando aos bancos…
- Pois é: ele senta-se a meu lado, ali na parte de trás, em geral vira-me as costas e não me deixa ver nada, faz-me ali qualquer coisa que eu a bem dizer não sinto nada, depois um outro dá-lhe uma seringa e depois faz mais qualquer coisa e pronto, já está.
- Já está o quê?
- Já está o serviço dele feito. Tira as luvas, atira-as ali para o caixote do lixo e vai-se embora, quando não vai ter com outra vaca…
- Eh homem danado! E diz-me uma coisa. Se dizes que não sentes nada, isso resulta?
- Se resulta? É tiro e queda! Tempos depois começa-me a inchar a barriga…
- Não me digas que ficas grávida?
- Qual grávida qual caneco. Fico prenhe e bem prenhe. Ou pejada, ou cheia, ou mesmo prenha como por aqui se diz. Deixa-te lá dessas fidalguias…
- E tu ficas a ver navios…
- Não. Fico a dar leite à espera que nasça o bezerro ou a bezerra. É a vida!
- Então isso quer dizer que o Boiboizão está reformado…
- Qual reformado! És mesmo lélé da cuca (influências de um grupo de brasileiros que tinha passado pela feira), está no activo e é muito bem tratado. Dizem que tem mais filhos do que flores tem o campo.
- Como é possível? Estás a gozar comigo…
- Já não gozo nem com ele e ia agora gozar contigo…tenho pena mas não sei responder-te. Vai ali ao balcão que há à entrada do pavilhão talvez alguém te informe.
- Bem, sendo assim vou deixar-te. Vem ali um grupo excursionista, vais ter que ouvir mais umas piadas.
- Deixa-os vir que com essa gente não falo. Falei contigo porque me pareceste boa peça e além disso um bom ignorante.
- Ignorante era a tua mãe, a grande vaca, mas essa, pelo menos, fazia tudo à antiga, não era como tu… - e fui-me afastando para não ter de ouvir a resposta da Belisária.