Quinta-feira, 29 de Outubro de 2009

Conversa com a vaca Belisária

               

 

 

A propósito da polémica que corre por toda a Europa sobre o preço do leite, das cotas (ou das quotas para quem gostar mais) leiteiras, dos subsídios à produção, etc, etc, lembrei-me duma conversa que em tempos tive com a conhecida vaca Belisária, na altura uma campeã produtora de leite. Encontrei-a numa Feira da Agricultura em Santarém, num ano em que eu tinha ido de férias Tejo acima, a convite duma Fataça, que morava para os lados da Azambuja. Não é que eu goste muito de água pouco salgada e morna, mas o convite não era para rejeitar, ainda que eu seja um pouco alérgico ao cheiro a petróleo de que a Fataça abusa, mesmo sendo um perfume com alta cotação no mercado. Estava eu a mostrar à Fataça o ubérrimo úbere (se me for permitido expressar-me deste modo) da Belisária, enquanto esta ruminava uma qualquer ideia à mistura com um resto de palha, quando ela, a vaca, resmungando ainda com a boca cheia, se dirigiu a mim:

- Tás admirado?

- E não é para estar?

- Não és o único. Toda a gente que por aqui passa abre a boca de espanto e diz umas gracinhas.

- De facto, não é para menos. Pareces mais uma fábrica de leite que uma vaca, com todo o respeito.

- Mas tenho orgulho no meu úbere. A malta que por aqui passa diz sempre “olha as mamas que a vaca tem”. Não foi por acaso que já fui premiada várias vezes.

- Os bois devem andar todos atrás de ti?

- Bois? Muuuu..ahahaha! És mesmo um atrasadinho. Isso já se não usa.

- Eu pelo menos não uso a não ser em bifes – disse eu à espera que a Belisária me perguntasse se um Carapau também come bife. – Mas já te deixaste de bois?

- Já me obrigaram a deixar. Há séculos! E que saudades desse tempo…

- Já não te aguentas nas canetas?

- Quais canetas, qual não aguento, estás a chamar-me velha?

- Nem pensar. Com esse ar luzidio, estás aí para durar e ruminar… mas como disseste que já não…

- Em que mundo vives tu, ó barbatanas?

- Isso é para mim ou aqui para a Fataça?

- Para ti meu azulinho; não é contigo que estou a falar? Há que tempos não sinto o peso dum boi.

- Mas então não é preciso de vez em quando “sentires esse peso” para poderes depois dar leite?

- Grande ignorante! Então nunca ouviste falar em inseminação artificial?

- Sei lá o que é isso – disse eu a disfarçar a minha pretensa ignorância, à espera de ouvir a explicação técnica da vaca. Nós por lá não usamos disso. É mesmo luta corpo contra corpo, disse eu a piscar o olho para a Belisária.

- Deve ser deve…sempre ouvi falar em ovas de peixe, mas está bem eu engulo essa.

- Mas então se já não vais ao boi, como é “isso” feito?

- Para já “nunca fui ao boi” como tu dizes. Sou vaca séria e não uma dessas. Quando estava na hora, traziam o boi até mim para conversarmos.

- Devia ser uma rica conversa – repliquei a puxar-lhe pela língua (“língua de vaca estufada com umas cenouras, rico petisco”, pensei eu mas não disse nada não fosse ofendê-la).

- À nossa maneira lá comunicávamos. Aliás achas que é precisa muita conversa? Creio que não tens experiência nenhuma sobre o assunto. Mas sempre te digo que quando me entusiasmava era cá cada berro muuuuuuuuuuuuuuuuuuu!!! que se ouvia na Golegã. Bons tempos. E então o Boiboizão era cá um pedaço, que não te digo nada. Pesado como um camião TIR, mas na altura tinha a leveza dum fardo de palha… lembrava-me lá eu do peso…

- Isso tresanda a saudades de outros tempos cara Belisária…

- Se te parece! Agora está tudo mudado.

- Mas então como é que as coisas funcionam agora. Ou tu já não…

- Já não? Sou a rainha das vacas, ou a vaca das rainhas, conforme aches melhor. Se ando de feira em feira é porquê?

- Mas se já não contactas os bois…

- Isso é verdade. Contactos directos, tipo luta corpo a corpo, acabou-se. Mas tenho contactos indirectos, ou se quiseres, por interpostas pessoas.

- Interpostas pessoas? Homens metidos contigo?

- Homens e não só. Às vezes até já mulheres…

- Grande vaca! Não te estava a ver nessas orgias…

- Quais orgias quais carapuças, estás a insultar-me.

- Não tive intenção. Cada qual faz o que quer, não tenho o direito de te julgar. Desculpa se te ofendi.

- Vê-se que és mesmo um molho de feno de ingenuidade e ignorância. O que eu quis dizer é que agora o “trabalho” (“qual trabalho? O Boiboizão adorava isso” – ruminou para dentro a vaca) é feito por uns tipos em geral vestidos de branco, que mais parecem uns anjolas que outra coisa.

- Amiga Belisária, creio que já te posso tratar assim, ainda não estou a ver como a coisa se processa. Então e esses anjolas usam algum banco, algum escadote, qualquer coisa assim…senão não estou a ver como…

- Por acaso usam banco sim senhor. Até diria que usam dois. Um aqui para se sentarem ao pé de mim e outro acho que o tem lá não sei onde, meio escondido e parece que é frio como o pólo norte.

- Que sabes tu do pólo norte?

- Devo saber tanto como tu, ora essa. Sei que é frio, com gelo por todo o lado.

- Mas voltando aos bancos…

- Pois é: ele senta-se a meu lado, ali na parte de trás, em geral vira-me as costas e não me deixa ver nada, faz-me ali qualquer coisa que eu a bem dizer não sinto nada, depois um outro dá-lhe uma seringa e depois faz mais qualquer coisa e pronto, já está.

- Já está o quê?

- Já está o serviço dele feito. Tira as luvas, atira-as ali para o caixote do lixo e vai-se embora, quando não vai ter com outra vaca…

- Eh homem danado! E diz-me uma coisa. Se dizes que não sentes nada, isso resulta?

- Se resulta? É tiro e queda! Tempos depois começa-me a inchar a barriga…

- Não me digas que ficas grávida?

- Qual grávida qual caneco. Fico prenhe e bem prenhe. Ou pejada, ou cheia, ou mesmo prenha como por aqui se diz. Deixa-te lá dessas fidalguias…

- E tu ficas a ver navios…

- Não. Fico a dar leite à espera que nasça o bezerro ou a bezerra. É a vida!

- Então isso quer dizer que o Boiboizão está reformado…

- Qual reformado! És mesmo lélé da cuca (influências de um grupo de brasileiros que tinha passado pela feira), está no activo e é muito bem tratado. Dizem que tem mais filhos do que flores tem o campo.

- Como é possível? Estás a gozar comigo…

- Já não gozo nem com ele e ia agora gozar contigo…tenho pena mas não sei responder-te. Vai ali ao balcão que há à entrada do pavilhão talvez alguém te informe.

- Bem, sendo assim vou deixar-te. Vem ali um grupo excursionista, vais ter que ouvir mais umas piadas.

- Deixa-os vir que com essa gente não falo. Falei contigo porque me pareceste boa peça e além disso um bom ignorante.

- Ignorante era a tua mãe, a grande vaca, mas essa, pelo menos, fazia tudo à antiga, não era como tu… - e fui-me afastando para não ter de ouvir a resposta da Belisária.

 

 

 

 

 

 



 

publicado por Carapaucarapau às 10:17
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De Salto raso a 29 de Outubro de 2009 às 21:05
Tadinha da vaca. Acho que ela era mais feliz antes das novas tecnologias. Ela, uma vaca de bom porte, de boa postura, de boa mama (desculpe úbere), com bom ar, destinada a "conviver" com dois sujeitos montados em bancos. Um dia destes, a vaca, depressiva, passa a dar água em vez de leite.
Já agora e os bois? Estão na reforma?


De Carapaucarapau a 29 de Outubro de 2009 às 23:26
Há bois e bois. Os verdadeiros, os reprodutores são bem tratados, a pão de ló diria, para se manterem em forma e acabarem por ser "manipulados" (acho que é o termo técnico) para a recolha do semen. Aquilo que pelos métodos "antigos", isto é naturais, servia para uma vaca, desta maneira dá para uma manada delas e ainda sobra para alguma outra vizinha jeitosa (esta última afirmação é minha).
Os outros "bois" vão para bifes.


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