Estávamos sentados no sofá, lado a lado, a conversar e a olhar para a televisão, onde um “senhor importante” estava a ser entrevistado e a dizer, obviamente, coisas importantes. Tão importantes como “a conjuntura é complicada”, “temos todos de fazer grandes sacrifícios” e “Portugal está a atravessar uma grave crise”.
A tia Armandina olha para mim e diz-me, naquela sua voz a destilar ironia:
- Este tipo é muito fino e diz coisas muito originais. Esta de Portugal estar a atravessar uma crise, deve ter sido dita, a primeira vez, pelo D. Afonso Henriques, enquanto batia na mãezinha. De então para cá, apanharam-lhe o jeito e aí vai disto. Nunca mais deixamos a travessia. Tudo umas bestas ao quadrado. São cópias uns dos outros, cada vez com menos nitidez. Que lhe parece, menino?
A tia Armandina trata-me invariavelmente por João, Joãozinho ou por menino, tudo dependendo do tipo de pergunta ou da disposição. Tem 84 anos, é viúva dum oficial do exército (que era meu tio avô) há muitos anos já e antiga professora do Liceu, vive sozinha, está sempre irrepreensivelmente vestida e penteada, vai sozinha à rua, faz as suas compras, anda nos transportes públicos e, quando não tem companhia “de jeito”, vai sozinha ao cinema ou teatro ver qualquer espetáculo, que julga que lhe vai agradar. Quando regressa desiludida e sente que as suas expectativas foram defraudadas, diz com a maior calma: “Oh João já foste ver aquele filme? Não? Então não vás. É um barrete! Usa muito a linguagem da “malta nova” e quando gosta de qualquer coisa não hesita em dizer que é “bué da fixe”.
- Oh Tia, a critica não diz assim tal mal…
- Críticos? São todos umas bestas!
A Tia Armandina tem muitas tiradas definitivas, mas “são todos umas bestas” é a mais usada. Às vezes eleva estas bestas ao quadrado.
E aplica-a, com a mesma veemência, ao 1º Ministro, seja ele qual for, ao Chefe da Oposição, ao mais pintado realizador ou ator, ao senhor Manuel da mercearia, ou mesmo ao senhor padre José. É só meterem o “pé na argola” (outra expressão da predileção da Tia), que a senhora não lhes perdoa.
De vez em quando eu digo-lhe:
- A Tia não pode ser assim tão severa. Os tempos são outros, as posições são hoje mais elásticas, os critérios de análise também têm de evoluir.
- Olhe menino, não me venha para cá com elásticos, que são coisas que sempre abominei. Em miúda ainda usei ligas, mas logo que pude dispor de mim, foi acessório que dispensei. A elasticidade será boa para as molas dos colchões, para as meias descanso, talvez para os preservativos, mas para as posições e para os critérios, como tu dizes, bah! Não me venhas com essa
conversa, senão ainda cais na minha consideração. Sabes que para além da muita amizade que te tenho também te considero muito. Mas nada de palermices!
PS: Nem eu sou o Joãozinho nem a Armandina é minha tia. Mas conheço-a e talvez lhe aproveite os dotes para mais uns posts. Ela é que não pode saber, senão…
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.
O almoço estava apalavrado há muito e hoje foi o dia. O almoço é só o pretexto para uma longa conversa sobre tudo o que venha à baila. Desde o que aconteceu a semana passada até ao que aconteceu, pelo menos há um século. Quando quero saber qualquer coisa sobre um antepassado recorro a ele. Nomes, datas, acontecimentos relacionados com a família, sabe tudo. Às vezes duvido que ele tenha a certeza que p. ex. em 15 de abril de 1875 fulano tenha casado com Sicrana, mas a verdade é que o afirma tão convictamente que eu limito-me a sorrir. A conversa, aliás, decorre sempre num tom de galhofa, brincando nós com certas situações que pretensamente se passaram. Da medicina à engenharia, da política à história e à agricultura, não fica calado em nada. Como se entendeu já, trata-se de um senhor já de provecta idade, um amigo desde sempre e hoje o mais antigo elemento da família.
Depois do almoço fomos verificar “in loco”, para tirar dúvidas, um edifício sobre o qual tínhamos tido uma discussão e acabamos no campo para me mostrar e ensinar as experiências que anda a fazer com algumas árvores de fruta.
Às tantas virou-se para mim e disse: “deves estar a pensar e a perguntar-te porque razão um tipo da minha idade ainda se preocupe com estas tretas ligadas à fruticultura”
Sorri, encolhi os ombros, respondi que não estava a pensar em nada mas sim a tentar aprender alguma coisa, mas ele fez que não ouviu as minhas palavras e continuou:
“É a velha história do velho agricultor e do rei. O rei viu o velho agricultor a plantar uma nogueira, árvore que leva muitos anos para dar o primeiro fruto e perguntou-lhe por que razão sendo ele já velho ainda plantava uma árvore daquelas. O velho respondeu: “Saiba Majestade que quando eu nasci também já cá encontrei árvores plantadas”. O rei respondeu: “grande lição me acabas de dar, meu velho homem. Para te recompensar toma lá esta libra em ouro”. Então o velho dobrou-se um pouco sobre a árvore que tinha plantado e disse: “ainda agora te acabei de plantar e já me estás a dar lucro”” .
E o meu velho amigo sorriu e acabou a conversa dizendo simplesmente: “como vês…”
Qualquer dia vamos ter outro almoço. Ficou prometido.
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Ontem, ao dar uma volta a pé pelos cantos e recantos da velha cidade, reparei uma vez mais, em como quase tudo é diferente da época em que por lá andava diariamente.
Numa esquina onde hoje está um prédio moderno, havia, nos tempos que já lá vão, uma pequena taberna chamada “O Cantinho”. Taberna como as outras, com o ramo de loureiro à porta para não enganar ninguém, tinha fama pelos petiscos que servia à clientela. Ficava a uns 30 ou 40 metros do edifício da Câmara e muita da sua freguesia era mesmo constituída pelas pessoas que iam tratar dos seus assuntos camarários.
Lembrei-me então duma figura, conhecida em toda a cidade e que trabalhava no edifício da Câmara, que eu conheci (sem conhecer) quando fui para o Liceu. Era um Capitão do exército, dos serviços administrativos, que nessa altura funcionavam no edifício da Câmara. Às 5 horas em ponto da tarde (“Eram las cinco en punto de la tarde en todos los reloges”, diria o Garcia Lorca) eu via-o descer a escadaria da Câmara, fazer o percurso até ao “Cantinho” e entrar. Entretanto chegava o autocarro que eu apanhava para regressar a casa e nada mais sabia do homem.
Algum tempo depois fiquei a saber que ele era conhecido na cidade como o “Capitão 5 litros”, “et pour cause”. Sempre pensei que o “Cantinho” era o cantinho onde ele se sentia bem e onde tinha ganho o apelido.
Alguns anos depois deixei a cidade rumo a uma outra e perdi-lhe o rasto.
Quis o acaso, que manda mais do que se pensa, que um dia conheci, numa empresa onde trabalhei, um sujeito com quem contactava diariamente, pois pertencia à minha “equipe”.
Algum tempo depois de nos termos conhecido, e sabendo ele donde eu era e por ponde tinha andado, disse-me assim: “o Sr. deve ter conhecido o meu pai: era o capitão Silva, mais conhecido como o “Capitão 5 litros”.
Foi então que ele me contou a história do pai. Saia do emprego às 5 da tarde, entrava no “Cantinho” às 5 horas e 1 minuto e até às 8 horas da noite corria todas as tascas da cidade a bebericar e a petiscar. Às 8 em ponto entrava em casa, sentava-se à mesa e jantava. Quando havia qualquer atraso no jantar, reclamava e dizia que os horários eram para serem cumpridos.
Aqui está em como eu, que só conheci o homem de vista, acabei por vir a saber a vida dele.
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Nesta altura do ano visito com frequência quase diária a Vila da Batalha, onde se encontra o respetivo Mosteiro (Mosteiro de Santa Maria da Vitória).
De todo o conjunto que constitui a obra, as chamadas Capelas Imperfeitas (atualmente rebatizadas como Capelas inacabadas) são certamente as que mais chamam a atenção dos visitantes.
Elas são também o que melhor define Portugal e os portugueses. Assim qualquer coisa como entradas de leão e saídas de sendeiro. Começamos em grande e acabamos…inacabados.
Quando é preciso ganhar fôlego para o voo final, ainda começamos o arranque da abóbada mas, ou por falta de verba ou por falta de vontade, ou porque nos viramos para outro lado, lá fica a casa sem telhado, que no caso da Batalha é dizer, lá ficam as capelas sem abóbada.
“Agarrem na trouxa e zarpem para Belém para construirmos os Jerónimos”, parece que foi a palavra final para deixar a obra inacabada. Já antes ela fazia que andava mas não andava. Quase século e meio a “partir pedra” e deixamos a obra pela metade.
Num outro local da vila, não muito distante das Capelas, há uma placa com um pequeno trecho de Miguel Torga, retirado do seu Diário, que reza assim:
“As Capelas Imperfeitas (…)
Os fados adversos, providencialmente, fizeram delas o símbolo concreto de uma pátria abstracta, em gestação perpétua, no desassossego de cada hino”.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.