Nota prévia: Uns dias depois de publicado este post descobri umas fotos referentes a "San Michel".
Mesmo com atraso resolvi publicá-las no fim, porque acho que dão uma ideia da beleza da casa.
O Livro de San Michele
Está entre os primeiros livros “sérios” que li na minha juventude. O livro foi-me emprestado, mas anos mais tarde comprei-o, reli-o e guardei-o. É um dos meus amores, exatamente por o ter lido enquanto jovem. Axel Munthe (1857-1949), o autor, foi um médico sueco que fez a sua vida profissional quase toda em Paris e Roma. O livro é uma mistura de autobiografia romanceada, de histórias reais, de vitórias e derrotas, de sonhos e de realidades. O autor sempre repudiou algumas das classificações com que a crítica se referia ao livro, mas aceitou uma designação que alguém lhe deu de “o livro da vida”. A dedicatória do livro também diz bastante duma outra faceta do autor. Reza assim: “A Sua Majestade a Rainha da Suécia, Protetora dos animais maltratados e Amiga de todos os cães”.
O grande “sonho” de Munthe foi construir uma casa na ilha de Capri, mais propriamente em Anacapri, que visitou ainda jovem e de quem logo se apaixonou. Digamos que uma parte da sua vida foi dirigida para tornar esse sonho realidade.
Mais modesto foi o meu sonho que, desde que li o livro a 1ª vez, logo pensei que um dia iria visitar “San Michele” (era o nome duma capela arruinada que havia em Anacapri, sobre cujas ruínas Axel Munthe construiu a sua casa sonhada. A casa herdou o nome da capela).
Alguns anos mais tarde, estando eu a passar uns dias em Roma, resolvi ir numa excursão de dois dias mais para sul, visitando as ruínas de Pompeia e Sorriento e Nápoles. Claro que o objetivo era, a partir daqui, dar um salto, de barco, até Capri. E assim foi. Chegado ao porto de Capri, subi até Anacapri, num autocarro que percorria uma estrada tão sinuosa que os carros tinham de seguir uma trajetória marcada na estreita via, para conseguirem fazer as curvas. De qualquer maneira, mais comodamente do que a 1ª visita que Munthe fez, em que teve de subir os 777 degraus que separavam Capri de Anacapri, lá no cimo do monte. Nesta minha viagem, claro que visitei todos os lugares que já “conhecia” da leitura do livro: a Gruta Azul, o Monte Solaro (?), que já tinha teleférico e claro está, o principal motivo da visita “San Michel”. Nesta altura, o escritor já tinha morrido há bastantes anos, “San Michel” já era a “Casa Museu Axel Munthe”. Mesmo nos últimos anos que morou na ilha já vivia noutra casa, de tal maneira “San Michele” tinha sido “assaltada” pelos turistas. Quando a visitei já havia muito turismo, mas nada parecido com o que acontece hoje, pelo que tenho lido e visto em certas reportagens.
A visita teve o ar de “revisita”a um local conhecido, pois eu tinha “seguido” aquela construção desde o princípio. Lá encontrei, além das colunatas, das estátuas, da Esfinge e outras coisas que sabia que estavam lá, todas as edições do “Livro de San Michele”, em não sei quantas línguas, entre as quais uma em português, igual à que eu possuo.
De volta a Nápoles, no barco, travei conversa com um simpático casal de guatemaltecos. Ele era ligado ao futebol e representava o seu país num organismo internacional do futebol.
Quando me falou em Guatemala eu sorri, por me lembrar duma outra história, que já não tem nada a ver com “San Michele”, mas tem a ver também com livros.
Fica para um próximo post.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.
Fotos colocadas uns dias depois da publicação do post:
1. A pérgula
2- Medusa e coluna africana
3- O quarto
4-A Esfinge
Sábado, ao fim da manhã. Eu bebia uma água sentado numa esplanada. Todas as outras mesas estavam ocupadas por grupos de estudantes universitários em “atividades de praxe”. Quase todos eram raparigas, o que não é de admirar. Eu estava meio distraído a olhar para o vai e vem das pessoas. Havia um movimento anormal aquela hora, porque tinha acabado um congresso sobre endocrinologia e diabetes, que tinha tido lugar na zona. Viam-se as pessoas a passar apressadamente para apanharem os seus meios de transporte. Umas já de mala aviada, outras com sacos e mochilas, que a organização tinha distribuído.
De repente dou comigo a olhar para um casal já de certa idade que tinha entrado na esplanada e se tinha aproximado da balaustrada. Eram ambos pequeninos e, equipados a rigor, pareciam dois miúdos que iam a caminho duns “pontapés na bola”, pois envergavam ambos a mesma indumentária: T- shirt vermelha, calção bege, pelos joelhos, peúgas pretas e ténis. Na cabeça, também bonés iguais, da cor dos calções. Pendurados ao pescoço traziam: ela, uma máquina fotográfica, e ele uma máquina de filmar e uns binóculos. Pernas e braços de magreza acentuada. Aliás notava-se que já tinham entrada naquela fase em que tudo encolhe. A partir daí a minha atenção virou-se para o casal. Passados uns momentos, “puxaram” das respetivas máquinas e vá de fotografar e filmar a “paisagem”. De vez em quando diziam qualquer coisa um para o outro. Por fim arrumaram o “equipamento” e tornaram a entrar no edifício. Por poucos minutos, pois logo apareceram com uma bandeja, duas garrafas de água e dois copos de plástico. Deram uma vista de olhos a tentar descobrir uma mesa vaga, mas não havia. Quando olharam para mim, sorri-lhes, fiz-lhes um sinal com a cabeça e indiquei-lhes as duas cadeiras vagas na minha mesa. Sorriram também, avançaram para mim, agradeceram e sentaram-se.
Tivemos uma conversa “animada” em diversas línguas, incluindo o esperanto. Eram ingleses. Vieram uma vez mais a Portugal. Viajavam muito. Às tantas ela viu um enorme cartaz duma empresa da indústria farmacêutica a gritar ao mundo a excelência da sua “bomba” para diabéticos, e tirou uma fotografia ao cartaz. Expliquei que tinha havido ali ao lado um Congresso e aquela farmacêutica deveria ter sido uma das patrocinadoras. Eles sabiam. Um neto deles, médico, era congressista e estavam ali exatamente à espera dele para almoçarem juntos. Depois o neto embarcaria para Inglaterra e eles iam ficar mais uns dias. Eu fiz-me de “lucas” e expressei a minha admiração por terem um neto “já” a frequentar congressos científicos. A minha falsa admiração resultou. Disseram-me a idade: ele 85, ela 83.
Já tinham “corrido” quase todo o mundo, viveram uns anos no oriente e agora viajavam para não estarem fechados em casa. Partiam no dia seguinte para o Porto para subir o Douro de barco e conhecer a região.
Estavam interessados em, brevemente, visitar as ilhas Falklands e depois a Argentina. Seriam diplomatas da paz, pensei eu a sorrir.
Acabaram de beber as águas, agradeceram uma vez mais e lá partiram, como tinham chegado. Passos curtos mas rápidos, prontos para correr mundo. Levantei-me também, segui-os durante uns metros e lamentei ter deixado no carro a minha máquina fotográfica. Teria apresentado aqui as suas figuras, de costas pois claro, para a posteridade.
Também gostaria de lhes ter dado um abraço, mas a tanto não chegou a nossa intimidade.
Mentalmente desejei-lhes saúde e longa vida para percorrerem os longos quilómetros que ainda têm pela frente.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.
Bichos
Quando eu era imberbe e louro e de olhos azuis, (coisas que nunca fui, com exceção para o imberbe) e tinha ar de mais novo ainda, estudava no liceu em Coimbra e vivia numa casa particular com outros rapazes e raparigas também estudantes e mais velhos que eu. Aliás eu era o único que não vinha da mesma região, pois todos eles tinham frequentado o mesmo liceu e já se conheciam antes. Quando um dos meus companheiros de casa fez anos, (ele era estudante de medicina e estava nos últimos anos), fui comprar um livro para lhe oferecer. Esse livro foi “Bichos” de Miguel Torga. Porquê?
Porque eu “conhecia” Torga, simplesmente por viajarmos muitas vezes no mesmo carro elétrico. Creio que foi a única razão.
Quando estava na livraria a pagar o livro, o empregado perguntou-me:
- Quer pedir ao autor para lho autografar? Ele está ali a falar com um amigo.
Eu era um puto envergonhado e não tive “lata” para aceitar a sugestão. Agradeci, paguei e sai.
Anos mais tarde, vim a saber que Torga era avesso a autografar os livros e pouca gente se pode gabar de ter um livro dele com autógrafo ou com dedicatória. Acho que foi Mário Soares quem há uns anos contou esta faceta do Torga e de como ele também lhe negou autografar um livro. Algum tempo depois, num bibliotecário, ele encontrou um livro de Miguel Torga, autografado por este, e com uma dedicatória. O livro teria sido da escritora Maria Lamas, se não estou enganado. Contou Soares que, na primeira oportunidade em que encontrou Torga, o pôs perante este facto: afinal o escritor também escrevia dedicatórias e autografava livros. Torga terá respondido qualquer coisa como: “que queria você que eu fizesse? Com um par de pernas como ela tinha…!”
A partir do momento em que soube que Torga não gostava de autografar livros, eu pensei muitas vezes o que ele me teria respondido se, na altura daquela minha compra aos 16 anos, eu lhe tivesse pedido para autografar o livro que eu acabara de comprar. Provavelmente ao olhar para o meu ar de menino embaraçado e não querendo desiludir um leitor em potência, mesmo não tendo eu os “argumentos” da Maria Lamas, talvez o autografasse.
E então ponho-me outro problema: eu teria oferecido o livro ou teria ficado com ele para mim? Ainda hoje não sei responder a esta pergunta.
Sei que já ofereci muitos “Bichos” ao longo da vida, que li e tenho a obra toda do Torga (tenho mesmo alguns livros em duplicado, de ofertas que me fizeram). Durante alguns anos fui “companheiro de elétrico” dele, sem nunca termos trocado nem um bom dia nem uma boa tarde, o que aliás estava de acordo com a maneira de ser dos dois.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.
O 1º livro
Não consigo lembrar-me do 1º livro que li, para além dos que fui obrigado a ler, ou seja, os escolares. Destes, claro que comecei a soletrar o “b, a, ba” e acabei por ter de ler e reler todos os que me foram aparecendo pela frente. Obrigatoriamente, também li um ou dois do Júlio Diniz: As Pupilas do Senhor Reitor e/ou A Morgadinha dos Canaviais. Como lá por casa havia toda a obra dele, acabei por os ler todos, não sei por que ordem, nem com que idade.
Depois, ou antes, ou tudo misturado, não devo ter falhado nenhum dos livros de aventuras do Emílio Salgari. De fio a pavio, devorava-os e depois fazia um relato “animado” das partes de maior “suspense” para um auditório de três ou quatro putos, pouco mais novos que eu. Despedi-me da obra deste italiano (dos autores mais traduzidos em todo o mundo, que deu milhões a ganhar aos editores e que morreu praticamente na miséria), lendo a série “Sandokan”, o terrível pirata malaio** que tinha por braço direito um marinheiro português.
Agora do 1º livro “a sério”, daqueles para gente crescida e de autor reconhecido, lembro-me perfeitamente. Tinha eu uns 13 anos e por companheiro de carteira um homónimo caído ali de paraquedas, vindo das Áfricas. Durante 2 anos sentamo-nos lado a lado nas aulas, jogamos a bola fora delas e descobrimos alguma coisa que ainda houvesse por descobrir. Um dia ele arrastou-me para a biblioteca municipal, requisitou dois livros, entregou-me um a mim e disse-me: “lê, eu já o li, é bom, tem umas cenas porreiras”. E lancei-me na leitura. O livro era do Erico Veríssimo e chamava-se “Caminhos Cruzados”. Ele andava a ler “A Selva” do Ferreira de Castro, que foi o livro que eu li a seguir. Das tais “cenas porreiras” lembro-me dum casal numa piscina a trocarem uma carícias e uns beijos.
Aqui há meia dúzia de meses atrás, o “acaso” (e o acaso, como sabem, dá muito trabalho para acontecer) pôs-me no rasto deste homónimo que durante dois anos partilhou comigo a mesma carteira e de quem nunca mais tive notícias. Nem eu nem os demais colegas desse tempo. Um dia, “descobri-o”, bati-lhe à porta, ele perguntou-me “o que é que o senhor quer?”, eu respondi “o senhor só te quer cumprimentar”, “não estou a entender”, “onde estavas quando tinhas 12 e 13 anos?”, “foi quando vim de Moçambique para estudar cá”, “quem foi o teu colega de carteira durante os primeiros dois anos, lembras-te?”, “não me digas…”, “digo”, “é pá eu estava a reconhecer a voz, mas não o dono”, “eu nem o dono nem a voz, mas reconheci esse abanar de cabeça”, “é pá dá cá um abraço”, e por aí fora até combinarmos um almoço que eu fiquei em organizar com mais dois outros “sobreviventes” desses anos do liceu. Foi portanto à mesa, num recanto pacato dum restaurante, em luta com umas postas de bacalhau na brasa, que os quatro desfiamos memórias. Claro que “Os Caminhos Cruzados” do Erico Veríssimo vieram à baila e eu relembrei a “cena porreira” que guardo dele. Os outros três riram-se, disseram-me que havia cenas “muito mais porreiras” e eu descobri que todos tinham lido o mesmo livro na mesma biblioteca, na mesma altura da vida. Alguém deve ter “passado a palavra” e esse foi certamente o livro mais requisitado durante uns tempos na biblioteca municipal daquela pequena cidade. Já não tinha a menor ideia do que tratava o livro. Por curiosidade socorri-me do Google, durante este escrito, para saber coisas. Ao que li, a crítica da altura classificou o livro como de “imoralidade e subversão” e eu fiquei a entender agora a razão porque a miudagem da altura o lera.
Oficialmente, este foi o meu primeiro livro. O segundo, como ficou já dito, foi “A Selva”. E do terceiro…não faço a mínima ideia.
Tenho a parte principal da obra deste grande autor brasileiro, que adquiri e li anos mais tarde. Nunca comprei “Os Caminhos Cruzados”.
**Este “pirata malaio” remete-me para outro pirata aparecido há dias numa praia nortenha, daquelas só de areia, vento e frio. “A Primeira Mulher Couve”, que costuma honrar este blog com uns comentários e que tem uma “banca de cozinha” espetacular (ainda que seja “importada”), teve um encontro imediato com um pirata dos autênticos, que trazia um papagaio ao ombro a gritar: “Cara Pau, Cara Pau”. Eu deixo a pergunta: “isto pode ser?” Podem verificar isso indo lá, à tal “banca da cozinha”, que não precisa nada que eu faça este “apelo”.
E estas palavras são, claro está, a minha forma de agradecer a referência que fez a este blog.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.
Durante a travessia do Alentejo o Homem viu um rebanho de ovelhas, de razoável tamanho. Ele sempre gostara de ovelhas, na terra dele praticamente não havia, a não ser uma ou outra e ranhosa. Levou o resto da viagem com o rebanho na cabeça, a apascentá-lo.
Ao chegar à vila, uma forte bátega de água apanhou-o pouco depois de ter saído do carro. Correu a procurar abrigo e viu ali perto uma igreja de portas abertas e outras pessoas a correrem também para lá. Entrou, sacudiu a água do cabelo e sentou-se a descansar. Lá fora a chuva viera para ficar. Ele traçou as pernas, apoiou o cotovelo esquerdo no joelho mais alto, e encostou a cabeça à mão esquerda. Ficou assim uns minutos, de olhos fechados. Adormeceu. Sonhou. Com ovelhas e um grande rebanho, com que outra coisa poderia ser? Ele a ver o rebanho a crescer, as ovelhas a terem crias, a quantidade de leite a crescer também para a produção de belo queijo. A lã, mais do que muita, a alimentar as fábricas da indústria têxtil, a exportação dos produtos, um nunca mais acabar de atividade económica, a produzir riqueza, a aumentar o emprego e claro a dar-lhe uns proventos de que bem necessitado andava. Tudo a correr pelo melhor.
Foi nesta altura que o cotovelo lhe escapou do joelho, a cabeça bateu com certo estrondo no encosto de banco da frente e ele acordou sobressaltado, arrancando uns risos contidos a que presenciou a cena.
O pior de tudo, isso as pessoas não saberiam nunca, foi a perda irremediável do império económico construído durante os breves minuto de sono.
O homem levantou-se, encaminhou-se para a saída da igreja, lá fora a chuva tinha terminado, e ele lá se lançou na sua vida sacra, de loja em loja, a tentar vender uns queijos da empresa de que era vendedor. Por ironia, queijos de leite de vaca…
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.