O Corvo e a Raposa
Quando o telemóvel tocou e o Corvo olhou para o visor, franziu aquelas penas que um corvo franze quando fica intrigado, mas acabou por atender.
- Sim, quem fala?
- É o Mestre Corvo?
- Sim…
- Bom dia. Daqui é a Raposa.
- Quem?
- Admirado? Sou eu, a Raposa e ando há dias a ganhar coragem para lhe falar.
- Sim?
- Sim e calcula certamente o motivo. Para lhe pedir desculpa daquela brincadeira parva que fiz consigo há uns tempos atrás e que acabou comigo a comer um queijo que era seu.
- Grande praga lhe roguei na altura, acredite; mas depois achei que eu é que tinha sido um grande parvo e até já tinha esquecido isso.
- Mas eu não esqueci e quero, de certa maneira, reparar a minha falta e convidá-lo para uma prova de queijos franceses, aqui em minha casa.
- Se não está a gozar comigo, claro que aceito, como sabe sou doido por queijos.
- Então fica combinado. Amanhã à tarde apareça aqui. Tome nota da morada. Rua…
- Eu sei onde mora. Lá estarei.
Mal desligou o telemóvel o Corvo, agitou as asas e crucitou uma gargalhada.
No dia seguinte, depois de alisar as penas e afiar o bico, agarrou uma maleta debaixo da asa e lá se apresentou o Corvo na morada. Bicou três vezes na porta (era o sinal combinado) e apareceu a Raposa vestida com a sua melhor pele.
- Olá Maître Corbeau ! Comme vous êtes joli ! Comme vous me semblez beau ! – regougou a sagaz Raposa.
- Deixe-se dessa conversa Madame, que foi com ela que me comeu o queijo, daquela vez.
- Desculpe Mestre, estava distraída, ainda a falar em francês, porque cheguei há dias de França onde fui visitar umas primas.
- Não sabia que tinha família em França…
- Tenho sim, daquela família das Renard, não sei se já ouviu falar.
- Vagamente sim. Mas peço que não me trate por Mestre. Aqui, na nossa zona, Mestre é o sapateiro. Trate-me por Vicente, sou da família dos Vicentes de Fora.
- Muito bem, mas tem de me prometer que também deixa esse tratamento de madame. Chame-me Renezinha que é o meu petit nom.
- Sim Renezinha, mas então trate-me por Centinho, como fazem os meus amigos.
Conversa vai, conversa vem, estavam sentados à mesa onde a Raposa tinha exposto uma “table de fromages” digna dum banquete. O Corvo não lhe quis ficar atrás e abriu a maleta onde trazia 3 ou 4 garrafas de uns tintos velhos que tinha seleccionado.
E a tarde decorreu entre vinhos portugueses e queijos franceses, muita conversa, com o Corvo a contar aventuras e a Raposa a jogar com o seu charme.
Às tantas, disse ela:
- Há tanto tempo aqui a falarmos e ainda nem te mostrei o resto da casa. Vem daí Cetinho…
E, agarrados um ao outro para não caírem, lá foram.
Ao narrador é vedado acompanhá-los, até porque não bebeu nada…
Saiu e sentou-se cá fora, à sombra dum vetusto carvalho, a pensar no raio das fábulas que reinventa.
E como fábula sem moral não é fábula, ficou a puxar pelo bestunto para ver se daqui tirava alguma.
E acabou por concluir que juntar vinho português com queijo francês tem de dar sempre em qualquer coisa de especial.
Mas se fosse um vinho francês, por exemplo, um Borgonha velho e uma cuca* de Serpa, meia cura, o resultado não seria muito diferente.
* Cuca é o termo usado no Alentejo para designar um queijo de tamanho médio.
A Cigarra e a Formiga
Truz, truz, truz!
A Cigarra abre o postigo e espreita. Do lado de fora a Formiga.
- Oh comadre a que devo a honra da sua visita? Entre, entre.
- Bom dia comadre Cigarra. - Nhoc, nhoc (quero eu dizer, beijo para cá, beijo para lá).
- Bons olhos a vejam, comadre. Se bem me lembro é a primeira vez que a vejo por aqui.
- É verdade. Sempre a correr dum lado para o outro, como uma formiguinha, nem tempo tenho para visitar as amigas.
- A comadre trabalha demais. Olhe que já não tem idade para essas coisas.
- Diz bem, comadre Cigarra.
- Entre e vamos ali para o terraço. Ofereço-lhe o quê? Um chá? Um cafezinho? Uma limonada?
- Olhe comadre. A bem dizer, bebo um copo de água. Esta escalada até aqui ao topo do pinheiro fez-me sede.
- Pois é comadre Formiga. Estou bem instalada mas o prédio não tem elevador. Por isso eu raramente vou lá abaixo.
Entraram as duas e a Cigarra encaminhou a Formiga para um terraço onde havia umas espreguiçadeiras.
- Esteja à vontade, comadre, enquanto eu vou buscar a água. Quer fresca ou ao natural?
- Já agora fresca, se fizer favor. E se tiver, com duas gotas de limão.
- Volto já.
Entretanto a Formiga deu uma volta pelo terraço, mirou a paisagem, abanou a cabeça umas tantas vezes e recostou-se numa das espreguiçadeiras.
Quando a comadre voltou com a água:
- Sim senhora. A comadre está aqui muito bem instalada, com uma lindas vistas, com todas as comodidades…
- Tem de ser comadre Formiga. A vida não é só trabalho, nem só cantorias. Isto de cantar também puxa muito pelo peito, preciso de ter os meus momentos de descanso.
- Tem toda a razão. Agora é que eu estou a ver como tenho andado enganada toda a vida. E devo isso, àquele sacaninha do La Fontaine, o conhecido francês explorador de formigas, que me amarrou para sempre aquela vidinha que levo lá em baixo, a correr de um lado para o outro, como se a vida fosse acabar amanhã.
- Oh comadre, também não exagere. Olhe que o La Fontaine até que nem é mau tipo, arranjou-me este apartamento, deu-me esta vida e não tenho muito que me queixar dele. Se eu não tivesse de cantar tanto, até que podia dizer que estava no sétimo céu.
- Eu, no seu lugar, também diria o mesmo. Agora nem queira saber o que ele fez comigo. Ainda por cima deu-me uma cave húmida para viver, que a comadre nem faz ideia.
- Oh comadre, porque é que não solta o seu grito do Ipiranga?
- Gritar eu? Com esta voz? A única coisa que tenho, são estas unhas para me agarrar ao trabalho…
- Agora reparo. Tem mesmo umas ricas unhas. Óptimas para tocar guitarra ou viola. A comadre com essas unhas e eu com a minha voz, bem podíamos fazer uma dupla de sucesso.
- Não me diga?
-Já disse.
E foi assim que nasceu a dupla “A Cigarra e a Formiga”. E escolheram para seu empresário o Sr. Jean de la Fontaine, que já as conhecia de ginjeira e que não quis perder este comboio…
Como já aconteceu no verão passado, a dias compridos corresponde imaginação curta, daí o “recurso” às “shorts stories”.
O melro
“Era negro, vibrante, luzidio” e soltava “dentre o arvoredo verdadeiras risadas de cristal”. Naquela manhã pincharolava de ramo para ramo e, tendo descoberto qualquer coisa que se movia, despediu breve voo e aterrou suavemente na relva próxima. Movimentos tão rápidos e precisos que a minhoca não teve tempo de se meter no seu refúgio e foi apanhada.
Naquele dia foi o pequeno-almoço do melro.
Moral da história? Duas.
1ª: melro que assobia quer minhoca.
2ª: minhoca distraída é minhoca comida.
Borsalino, o rolls roice dos chapéus
Ontem, ao atravessar uma das “cidades satélites” de Lisboa, lembrei-me dele, do “Borsalino”.
“Batizei-o” assim, quando o vi pela 1ª vez, a única em que trocamos meia dúzia de palavras. Não porque usasse chapéu, mas exatamente porque o não usava, o que a meu ver, era uma falha indesculpável. Envergava um fato completo, escuro e às riscas e eu achei que “ali” um borsalino assentaria como uma luva.
Nessa primeira vez, (eu não o conhecia) perguntou-me o que eu estava ali a fazer. Eu respondi-lhe, sorri e continuei a tirar os apontamentos, razão da minha presença naquele local. Eu estava com pressa. O homem não gostou da minha atitude e perguntou-me se eu sabia quem ele era.
Disse-lhe que não, que não sabia. Ele fez um gesto largo a “abarcar o mundo” e respondeu-me:
- Sou fulano, dono desta organização.
Com franqueza, eu olhei em volta e não vi “grande organização” em tudo aquilo, mas não lho disse.
- Prazer. E eu sou da firma Tal. – E continuei a fazer o meu trabalho.
Voltou à carga:
- O senhor deve ser daqueles que se julgam importantes.
- Eu? Não, não sou. – E continuei a sorrir.
Ainda houve mais uma troca de palavras, em que eu, delicadamente lhe disse duas ou três coisas de que manifestamente o homem não gostou. Ele concluiu a conversa com:
- Vou fazer queixa de si à sua administração.
- Faça favor. Se a fizer por escrito já, até eu a posso levar.
Uns vinte minutos depois, ao chegar ao meu local de trabalho, tinha um dos gerentes da empresa, à minha espera, a sorrir.
- Então que aconteceu? O homem telefonou-me a queixar-se que o tinha tratado mal.
- Quem, o “Borsalino”? – E foi a partir deste momento que se deu o batismo. Daí para o futuro, sempre que me tinha de referir a ele ou à sua empresa, sempre o chamava de “Borsalino”.
Anos depois vi-o num restaurante rodeado de “afilhados”. Ele era o verdadeiro “Padrinho” que eu conhecia dos filmes. Para completar ainda o retrato, soube que o restaurante também era dele.
Um dia, quando as coisas começaram a correr mal “nesta organização de que sou dono”, mandou uns funcionários, que eu aliás conhecia, pedir-me umas informações que poderiam resolver os problemas técnicos com que se estavam a debater.
- Foi o “Borsalino” que vos mandou vir ter comigo? – Perguntei a rir.
Eles não perceberam a pergunta.
Eu prestei-lhes todas as informações pedidas.
Os anos passaram, a empresa do “Borsalino” foi por água abaixo e um dia soube por acaso que ele já “estava noutra”, mas nunca mais soube nada dele.
Até que um dia…estava eu de férias e numa tarde de muito calor liguei a televisão. Estava a passar um daqueles programas que têm tanto interesse que nos levam logo a mudar de canal. Mas…estava lá o “Borsalino”. O assunto se bem entendi tinha a ver comas dificuldades que cada um tinha passado na vida, da maneira como tinham conseguido “dar a volta” e isto tudo embrulhado com a “fé” e a religião. E eu não resisti e fiquei a ver a atuação do meu “amigo” “Borsalino”. Que rematou a sua atuação com esta tirada. “Sim, tenho muita fé e tanto assim é que, sempre que faço um bom negócio, passo sempre um cheque para a Nossa Senhora de Fátima”.
“Chiça”- pensei eu. Desta nunca me tinha apercebido. O “Borsalino” tinha uma tão importante acionista com quem dividia os dividendos…
Sim, porque o cheque só seguia se o negócio “tivesse corrido bem”.
E foi a última vez que tive notícias dele, mas suponho que ainda “anda por aí”.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.