(História, do pintor grego Nikolaos Gyris)
Depois da pré-história...
Corria o ano da graça de 1793, reinado da Rainha D. Maria I, que por doença tinha entregue, no ano anterior, o governo do reino a seu filho D. João, que viria a ser o VI de seu nome, quando, num dos primeiros dias de maio, a sineta da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa despertou a atenção da “rodeira” de serviço, que acorreu para retirar da “roda” uma criança do sexo masculino que ali tinha sido depositada momentos antes. Tomou conta do bebé e anotou os “sinais” que o acompanhavam: o vestuário e outras peças de roupa, já usada e remendada, e um bilhete que dizia que tinha seis dias de idade e onde se pedia que fosse batizado com determinado nome. Pela roupa que vestia e pelos parcos acessórios que o acompanhavam, deduzia-se que era filho duma família pobre, provavelmente com mais filhos, que recorria aquele expediente por falta de condições para o criar. Apresentando-se em bom estado físico, o bebé foi entregue logo no dia seguinte a uma “recoveira” que o transportou para o entregar a uma “ama de leite” que vivia numa pequena aldeia a uns 130 km a norte da capital. O transporte terá sido feito numa carroça puxada por um cavalo ou um burro, ou eventualmente numa diligência. De qualquer modo deve ter sido demorado. A “ama de leite” que o recebeu devia estar inscrita na Santa Casa, presume o “historiador”, pois de outra maneira não se percebe que a criança tenha sido enviada para tão longe. Aí viveu 18 meses e depois foi entregue a outra ama, agora já “ama de seco”, que morava numa outra pequena aldeia distante da 1ª uma meia dúzia de quilómetros. Curiosamente os homens destes dois casais eram ambos sapateiros e não terá sido por acaso, embora isto não passe de uma conjetura, já que não há documentos que justifiquem isso. Até aos 22 anos de idade o “exposto” viveu com esta segunda família, deve ter aprendido o ofício de sapateiro, e saiu da casa para se casar com uma moça vizinha. Se aprendeu bem o ofício de sapateiro, não se sabe, mas que aprendeu bem a fazer filhos isso está documentado com os oito que o casal teve. Com tal prole não admira que a família se alargasse com rapidez e em grande número. Vieram os netos, os bisnetos, os trinetos e assim sucessivamente, que se foram espalhando pelos cinco continentes.
Num belo dia de julho, muitos anos depois, nessa mesma aldeia, nasceu uma menina que viria a ser tetraneta do fundador desta “dinastia”.
Poucos dias depois, numa outra aldeia não muito distante, foi a vez de nascer um moço que o destino quis que, trinta anos mais tarde, casasse com a tal tetraneta do “exposto”.
Um ano depois este casal teve um filho, a “coisa mais linda” que se viu por aquelas bandas, desde que o mundo era mundo. Nasceu num quarto dum velho casarão de que aqui já se contou parte da história. O tempo foi tecendo a sua teia, a Terra foi girando em volta do Sol, e esta “adorável criança”, quando já era homem feito e quase desfeito, teve um encontro com um conhecido Sapo, que o convenceu a abrir um blog e que o transformou num Carapau.
É ele portanto pentaneto, pela parte materna, da criança que numa bela manhã do longínquo maio de 1793, foi deixada na “roda” da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Daí para trás fica o desconhecido.
Vitória, vitória, acabou a história.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.
A pré-história
“O abandono de crianças é um ato já muito antigo e aceite pela sociedade. A título de exemplo podemos indicar o caso de Moisés, lançado no rio Nilo ou a história dos irmãos de Rómulo e Reno criados por uma loba”.
Assim começa um estudo sobre “Os expostos e desamparados na Misericórdia de Lisboa” e que poderá ser lido integralmente neste sítio.
Claro que não vou transcrever esse documento, mas referirei somente alguns dos passos que se seguiam quando uma criança era abandonada na Roda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e que não devia ser muito diferente do que se passava noutros locais de acolhimento. Esta “Roda” mais não era que um cilindro oco de madeira que rodava em torno dum eixo vertical e que tinha uma abertura por onde era introduzida a criança. Depois o cilindro era rodado e a criança ficava já do lado de dentro onde era recebida pela “rodeira” – a pessoa encarregada de a receber e de registar todos os “sinais” que acompanhavam a criança. Também lhe prestava os primeiros cuidados como a higiene e a alimentação e analisava o seu estado de saúde. Em algumas “rodas” a pessoa que “depositava” a criança (anonimamente) tocava uma sineta para chamar a atenção do interior para esse ato. Os “sinais”, como p. ex. bilhetes, certos pormenores da roupa com que iam vestidos ou outros acessórios, eram importantes para o caso de mais tarde a família pretender reaver a criança, o que era possível sob certas condições.
No caso da criança não apresentar nenhuma doença era entregue no mais curto espaço de tempo (às vezes algumas horas outras vezes alguns dias) a uma “ama externa” que estivesse em condições para a amamentar (“ama de leite”). Enquanto estivessem na Casa (ou Hospital), as crianças eram amamentadas por “amas internas” – “amas de leite” que viviam na Casa. Em geral estas “amas de leite” eram mulheres a quem tinha morrido um filho bebé, estando portanto em condição de amamentar outros, nunca mais de dois de cada vez. A criança era portanto entregue a uma ama externa para “criação de leite” durante um certo tempo (começou por serem dezoito meses, mas este período foi diminuindo ao longo dos séculos). Passado esse período, com a criança já desmamada, ela era entregue para “criação de seco”. A ama podia ser a mesma ou outra. As amas, quer as “de leite”, quer as “de seco” recebiam um pagamento (soldada), sendo que as de “leite” recebiam mais que as “de seco”. A partir dos sete anos de idade essa “soldada” diminuía consideravelmente já que a criança podia ajudar o casal em pequenos trabalhos, como aliás acontecia quase sempre com os filhos legítimos do casal.
Quando as amas viviam fora de Lisboa as crianças eram transportadas por “recoveiras” – mulheres que faziam as entregas.
Só para dar uma ideia da quantidade de crianças abandonadas na “Roda” da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa o estudo, que me serviu para aqui deixar estes elementos, fala num número superior a 68.000 entre os anos de 1780 e 1926, isto é, mais de 465 por ano, em média.
Quem estiver interessado em saber mais pormenores pode consultar vários sites na internet sobre o assunto para além daquele que acima indico e de que deixei o link.
Enquanto fazia algumas consultas que me permitiram escrever este post, acabei por ler esta notícia publicada em 27/02/2007 pelo Diário de Notícias, que aqui deixo como curiosidade e que prova que afinal o mundo não mudou muito.
“Em Itália, um hospital público nos subúrbios de Roma, estabeleceu um serviço para acolhimento de crianças recém-nascidas abandonadas. Numa dependência criada para o efeito e rodeadas de processos para garantir a discrição e o anonimato, as crianças podem ser deixadas num berço, o qual tem um dispositivo que avisa o pessoal do hospital da sua presença. A partir desse momento, a criança fica totalmente ao cuidado desse pessoal. Ora, isto não passa do retomar de uma instituição criada na Idade Média e que, em muitos países da Europa, sobreviveu até ao século XX”.
Terminada, deste modo, a pré-História, no próximo post entraremos na História
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.
Quando o vimos avançar, com um grande barrete branco na cabeça, um bigode à Salvador Dali, um sorriso sádico e de puro gozo estampado no rosto e empunhando um enorme facalhão, todos, mas mesmo todos, “incluindo a banca da cozinha”, sentimos “o grande arrepio”.
Foi por um triz que consegui formar um salto “encarpado” e escapar pelo ralo da pia da cozinha.
Quando, tempos depois, li que ia haver um concurso para escrever uma história, lembrei-me desta aventura e meti mãos à obra, “como se eu soubesse escrever”…
Esta “short story” foi especialmente pensada para responder ao desafio duma bloguista que costuma frequentar estas águas e que propôs o concurso. Os links levam aos diversos blogs de tão produtiva bloguista.
Apresentados os jogadores no post anterior, dispus-me a vê-los jogar uma partida de sueca.
O 1º a jogar fui o Poeta Chiado que atirou para a mesa uma carta pequena de espadas. Pessoa joga o ás e o Camões, lá das alturas, atirou a bisca que tinha seca, despedindo-se dela: “alma minha gentil, que te partiste…” Eça completa deitando o rei e imitando o conselheiro Acácio diz qualquer coisa como: “candeia que vai à frente…”.
Fernando puxa por mais um ás. Luís assiste, José Maria carrega com outro rei e o António também assiste, sem dar pontos e sentencia na qualidade de mais velho: “o primeiro milho é dos pardais”.
- Ah! Ah! – ri Eça e Fernando sorri.
Pessoa puxa agora uma carta sem valor, dizendo “o que há em mim é sobretudo cansaço”, o que leva Luís Vaz a dizer “isso assim não vale, o Álvaro está a ensinar-te” e cobre com o valete. Eça deita uma quina e António Ribeiro faz a vasa com o ás de paus.
Eu continuava fascinado, não tanto pelo que diziam ou pelo que jogavam, mas sim pela maneira como, de longe, lançavam as cartas que descreviam umas trajetórias incríveis e aterravam suavemente em cima da mesa. Sobretudo as que vinham do Camões, lá dos seus seis ou sete metros de altura e as do Eça, que era o jogador mais distante e que lançava as cartas de maneira a subirem a rua do Alecrim e a darem uma curva para atingir a mesa, eram verdadeiros prodígios que me deixavam de boca aberta.
De repente acordei, estava a transpirar, sentia-me mal e tinha tonturas. Vi as horas, eram duas e meia da manhã e levantei-me com cuidado para não cair. A indisposição era grande, “mas que estupidez ter comido uma feijoada de chocos ao jantar”, fui até à cozinha, bebi uma água das Pedras, previamente aquecida, em pequenos goles e descansei um pouco. Já mais recomposto vesti-me, meti outra garrafa de Pedras no bolso e sai a dar uma volta. Sentia que andar a pé me ia fazer bem, para retomar a digestão que o sono tinha interrompido e que era a causa do meu mau estar. Comecei a andar sem destino. Ao fim de algum tempo senti que me estava a sentir melhor e lá pelas três e meia da manhã, quando dei por mim, estava a chegar ao Largo do Chiado. Foi nessa altura que vi na esquina da igreja da Encarnação uns vultos sentados a uma mesa. “Tu queres ver…” – disse baixinho a esfregar os olhos. Mas dando uma olhadela para as três estátuas que daquele ponto eu avistava, reparei que estava tudo bem, tudo de acordo com o bronze e a pedra. O Pessoa até dorme de chapéu, reparei eu.
Já próximo da igreja reparei que os vultos eram quatro pessoas vestidas de verde com umas faixas fosforescentes. Eram cantoneiros da Câmara que andavam na sua faina da limpeza da zona e que tinham feito um intervalo para petiscar qualquer coisa.
- Boa noite! – Disse eu ao chegar junto deles.
- Boa noite – responderam em coro. – É servido?
- Obrigado, não posso comer nada, estou um bocado mal disposto.
- Nem uma cerveja?
- Não, obrigado estou a água das Pedras – disse, tirando a garrafa do bolso.
Em cima da mesa estavam um naco de presunto e meio pão além de umas tantas garrafas de cerveja. A um canto um baralho de cartas.
- Fazem isto todas as noites?
- Não. Só hoje porque o Tobias faz anos e trouxe um petisco.
- E também jogam as cartas? – Perguntei apontando com o queixo o baralho.
- O senhor talvez não acredite, mas a mesa e as cartas já cá estavam quando aqui chegamos, nós só trouxemos as cadeiras ali da esplanada. E mais, todos nós vimos uns tantos papéis a voar com o vento e a caírem aqui nesta zona. Quando nos aproximamos não vimos nenhum papel e só encontramos estas cartas em cima da mesa. Não percebemos nada do que aconteceu, mas aproveitamos a mesa e petiscamos aqui mesmo.
- Oh amigos! Isso não será já efeito das cervejas? – Perguntei a rir, enquanto eles se levantavam, guardavam o resto da bucha e retomavam o trabalho.
- Então continuação de bom trabalho e até outra noite – despedi-me.
- Boa noite. Olhe lá! Não quer levar o baralho? Nós não o levamos, deve estar embruxado.
Peguei nas cartas, meti-as no bolso, dei uns passos, voltei-me e perguntei-lhes:
- Uma coisa, amigos. Vocês não se terão esquecido de tomar as gotas hoje? E comecei a descer a Rua do Alecrim, a sorrir.
Ao passar pelo Eça disse-lhe que ia até ao Aterro, mas ele estava a dormir, ainda e sempre com a mulher nos braços. Raio do homem…
Acabei a noite sentado no Cais das Colunas à espera do 1º raio de sol e do 1º voo das gaivotas. Maneira para dizer que esperava pelo primeiro Metro para voltar para casa.
Quando cheguei eram sete da manhã, abri a janela que dá para um “Ecoponto” que fica do outro lado da rua, mas uns metros mais acima e, uma a uma, consegui meter as quarentas cartas, a partir do meu 4º andar, no contentor azul.
Acredite quem quiser.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.
Há dias, para tomar uma água, sentei-me numa esplanada ao lado dum senhor de chapéu na cabeça e em frente a outro, sentado e de mão estendida. Um pouco afastado e mais à minha direita estava uma outra personagem da mesma laia e um pouco mais longe e fora da minha vista, mas logo ao virar a esquina, ainda um outro figurão. Imaginei os quatro, agora desempregados e com tempo livre, a jogar à sueca, com uma mesa virtual situada algures num ponto em que se tocam a Rua do Alecrim, o Largo do Chiado e o Largo de Camões, ali na esquina da igreja da Encarnação, para assim ficar à vista e ao alcance de todos. Os quatro jogadores seriam o Fernando Pessoa, o do chapéu, o Poeta Chiado (António Ribeiro de seu nome), o da mão estendida, o Luís de Camões, de pala no olho, e o Eça de Queiroz, de bigode e com o “manto diáfano da fantasia” a acompanhá-lo. As duplas seriam, evidentemente, Pessoa - Eça versus Camões - Chiado. Já pela posição relativa em que se encontram e pela dificuldade em mudarem de lugar, já porque foram contemporâneos, dois a dois.
Se é certo que os dois últimos se conheceram e eventualmente terão bebido uns copos juntos, já a primeira dupla nunca se sentou à mesma mesa (por uma questão de diferença de idades) ainda que fossem dados também a beber uns copos (mais o primeiro que o segundo, que gostava, mas era fraco do estômago).
Quem irá sair vencedor deste jogo da sueca é que é difícil vaticinar.
A dupla Camões - Chiado é mais homogénea e o Camões é bem aceite como capitão da equipe. Já do outro lado se não pode dizer o mesmo, não funciona bem enquanto tal, mas a valia dos jogadores é incontestável e cada um, de per si, pode fazer a diferença em partidas mais renhidas. Uma coisa é certa. São quatro “tesos”, mas o par Pessoa - Eça tem uma capacidade de recorrer a “cartões de crédito” que os outros dois não possuem. Já quanto à capacidade de angariarem créditos femininos, as equipes parecem empatadas, já que em cada uma há nitidamente um elemento que atrai algumas “poupanças”, enquanto os outros dois não são nada populares. Um por opção, ao que se dizia, e o outro por manifesta falta de jeito. O Saramago, que não faz parte deste jogo, nem como árbitro, um dia insinuou que o Pessoa (ainda que vestido com outra “farda”, no que aliás era perito), teve uma aventura com uma tal Lídia, empregada dum hotel, mas isso deve-se mais ao facto de ele, Saramago, querer explorar esse filão (o filão Pessoa, continua a dar) do que outra coisa.
Quanto a “parlapié” todos eles eram exímios na arte, cada qual com seu estilo, mas palheta não lhes faltava. Digamos que o que lhes sobrava em palheta lhes faltava em dinheiro (verdade seja dita que de Pessoa nunca se ouviu dizer que precisasse de pedir. E Eça, se vivia sempre a crédito, também é verdade que angariava com mais ou menos facilidade esse crédito. Digamos que era o consumista do quarteto). Dos outros dois nem é bom falar quanto a cacau. Nem dinheiro nem crédito.
Dos quatro o mais pacato parece ser o Chiado, que vindo de Évora ancorou ali por aquelas bandas (daí o nome por que é mais conhecido) e tudo leva a crer que se coçou por todas aquela esquinas, enquanto o parceiro da pala correu este mundo e o outro (ou Seca e Meca, olivais de Santarém) e os da outra equipa também andaram por esse mundo e não se limitaram a frequentar a zona a que agora o bronze e a pedra os obrigam.
Nesta hipotética partida de sueca, estou a vê-los todos com um copo ao lado, mas “cheira-me” que os copos não têm todos o mesmo liquido. Não que não se pudesse arranjar uma bebida comum, mas porque cada um tinha suas predileções e sobretudo a dupla mais recente gostava de ir um pouco mais além do carrascão, não o enjeitando todavia.
Como a sueca é um jogo calado, é evidente que eles também não falariam uns com os outros, nem no fim de cada partida para discutir as peripécias do jogo. Aliás, nas condições em que estão atualmente, ser-lhes-ia ser muito difícil fazerem-se ouvir. Não fora eu servir de intérprete e nem o jogo começariam.
Entretanto eu acabei de beber a água que tinha pedido, dei uma palmada no joelho de Pessoa, acenei com a mão ao António Ribeiro, dei uns passos para piscar o olho ao Camões e ao Eça e desci a Rua Garrett (só faltava mesmo mais este, mas a sueca é só para quatro).
Nenhum deles me respondeu ao cumprimento.
Nota: Quando o fotógrafo privativo deste blog tirou as fotos, pareceu-lhe ter ouvido o Eça dizer: “esta choldra continua a mesma de sempre. Agora fizeram de mim cabide e penduraram-me isto ao pescoço. Disseram-me que fizeram o mesmo ao Poeta Chiado”.
De facto os dois tinham uma “tabuleta” pendurada a incitar ao voto. Coisas...
Daí a foto do Eça estar mais reduzida para a tabuleta não aparecer já que a do Poeta Chiado foi fácil esconder.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico – convertido pelo Lince.