Quinta-feira, 28 de Abril de 2011

Os opfinkers

 

                 (Isto é um galo de Barcelos e nem sei como veio aqui parar)

 

Na selva dos opfinkers * além de árvores há, como é mais que evidente, opfinkers.

Os opfinkers são umas criaturas ainda não completamente estudadas e que têm despertado alguma curiosidade ao longo dos tempos aos humanos, que em geral se surpreendem com eles e com as sua maneira de viver.

Os opfinkers vivem nas árvores, mas não voam. Deslocam-se rastejando mas mesmo assim, alguns deles, são bons trepadores. Não têm cabeça e quando se olha para eles só se vêem os olhos, não se sabendo muito bem como os olhos se conseguem manter sempre na mesma posição em relação ao corpo. Também as barrigas proeminentes são uma boa caracterização para os opfinkers. Ao longo dos anos muito boa gente tem tecido teorias sobre o aspecto destas criaturas. Há actualmente duas correntes. Uma defende que a cabeça dos opfinkers é transparente e vazia, não contendo merda nenhuma, e a outra defende que não têm mesmo cabeça e que os olhos se mantém no sitio graças a um equilíbrio de forças atractivas e repulsivas, de origem magnética, mas cujo campo não é detectável pela aparelhagem actual.

Os opfinkers, em geral, não se sabem governar, nem nunca souberam. Além disso nunca andam informados e qualquer um mais vivaço engana os outros, bastando para isso prometer-lhes uma banana ou coisa parecida. São broncos e, quando em grupos, entusiasmam-se facilmente, manifestando esse entusiasmo em gritarias e no arremesso de pedras com o que se divertem imenso. Não há neles o mínimo sentido da realidade e só se sabem orientar pelo sol. À noite, sem essa bússola, chocam de encontro às árvores, pelo que a maioria fica no ninho a fabricar mais opfinkers, ainda que a produção seja pequena, artesanal e de baixa qualidade. Acasalam em qualquer época do ano, com bastante facilidade, mas quase sempre à pressa e logo a seguir viram-se para o lado e emitem uns sons muito característicos a que chamam “ressono”.

Actualmente a ONU está a pensar em conservá-los numa reserva para onde lhes lancem uma ração diária para os manter vivos, para preservação da espécie e para mostrar às crianças, que em excursões os visitem, como exemplo de como ficarão senão comerem a sopinha toda. Também servem de exemplo para os povos que estejam em risco de perder a cabeça.

Os opfinkers escolhem sempre, para os governar, o opfinker que tiver olhos maiores pois isso mostra a maior capacidade para enganar os outros Está mesmo provado que quanto maiores forem os olhos menores são outras partes do corpo e eles acham isso “o máximo”.

Os organismos internacionais de auxílio aos povos subdesenvolvidos não querem nada com os opfinkers porque têm medo de também serem contagiados pela sua falta de cabeça.

“ O melhor é abandoná-los à sua sorte pois assim talvez acabem por se comerem uns aos outros e isso é bom para toda a humanidade” – é uma teoria que já tem bastantes adeptos.

No entanto, indiferentes a tudo isto, eles continuam a cantar e a dançar…

 

 * Não há tradução oficial para opfinkers. Pode ter várias designações, mas achei melhor manter a palavra original, não fosse provocar malentendidos.

publicado por Carapaucarapau às 12:23
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Quinta-feira, 21 de Abril de 2011

Petrarca (parte II)

(2ª parte - 4 anos depois, no jardim do 37)

 

- Tu daí vês a miúda?

- Vejo. Está descansado que está a brincar com o Ovídeo.

- Mas não confies totalmente nele porque, lá por ser teu filho, ainda é muito novo para tomar conta da Petra.

- Tu gostas muito dela, não gostas? Também não admira. Se não fosses tu ela não estaria aqui. Até lhe puseram o nome que tem em homenagem a ti.

- Ora…

- Já te disse mil vezes. Eu ouvi falarem nisso…

- Já pensaste na volta que isto tudo deu por causa da miúda?

- É verdade! O polícia juntou os trapinhos com a médica, adotaram a miúda, nós estamos juntos, já tivemos duas ninhadas de filhos…

- Foi a sorte grande que saiu à miúda… e a ti.

- A mim?

- Sim, sim a ti. Desde que o meu dono veio para cá, deixaste de ir ao veterinário e recuperaste a alegria de viver.

- Grande alegria! Sempre de barriga cheia e a ter de te aturar e aos pequenos…

- E não gostaste não? E também não os aturaste muito tempo. Levaram-nos…só nos deixaram o Ovídeo.

- Talvez seja melhor assim. Muitos cães juntos só dão zaragatas.

- E depois sabes que estão bem e vem-nos visitar de vez em quando…

- Lá isso… Só a Lolobrigida é que eu não vejo há muito tempo.

- Mas sabes que está para fora e qualquer dia volta.

- Espera um bocadinho. Estão a chamar-me. É o Faísca…

- Não respondas a esse cão vadio. Olha que…

- Respondo, respondo que sou bem-educada. Vou ali à sebe para ver o que ele quer.

- Tu não vais…És mais teimosa que uma cadela…Não tem emenda esta Marilyn…

Passados uns momentos já com a Marilyn de volta:

- Que estás ainda a rosnar? Quem é que não tem emenda?

- O que é que ele queria?

- Tens alguma coisa com isso? Mas que mania essa de te meteres na minha vida…E logo tu…

- Logo eu, o quê?

- Nada. Cala-te boca…

- Olha a miúda a tentar abrir o portão. Tenho de ir lá.

- Não vale a pena. Ela é ainda pequena não chega ao fecho. Importas-te mais com ela que o pai e a mãe…

- Isso com certeza, senão não a tinham abandonado…

- Não era desses que eu estava a falar.

- Chega-te aqui ao pé de mim, querida Marilyn.

- Hum… que é que tu queres? Não venhas com a conversa do costume…

- Até parece que não gostas das minhas conversas… Mas agora o caso é outro.

- Então o que vem a ser?

- Tens de prometer que não contas a ninguém. Nem a nenhum dos teus filhos.

- Também são teus!

- Isso agora!

- Mau. Que queres dizer com isso? Não te admito essas insinuações. Sabes que fui cadela só dum cão. Por acaso um senhor cão, mas que está a ficar cada vez mais chato e difícil de aguentar. Qualquer dia mando fazer testes de DNA para não vires com essas desconfianças...

- Que é isso do DNA?

- Sei lá…Ouvia dizerem isso nas telenovelas, quando eu tinha tempo e me deixavam vê-las. Agora tenho que te aturar…

- Ain, ain, ain… Gosto de te ver zangada. Ficas ainda mais bonita.

- Está bem, disfarça. Mas vais-me contar essa história ou não?

- Primeiro promete que guardas segredo.

- Absoluto! Palavra de cadela.

- Não tencionava contar isto a ninguém, mas para veres quanto confio em ti, aqui vai.

- Desata essa língua. Já estou em pulgas.

- Vai-te coçar lá para longe que eu sou alérgico…

- Deixa-te disso. Conta lá!

- Ouve então. Sabes que eu conheci a mãe da Petra?

- Não me digas! Não acredito! E ficaste calado?

- Eu explico. Três ou quatro dias depois de ter descoberto a miúda no contentor do lixo…

- Ainda me lembro desse dia! Estavas todo vaidoso e eu fiz-te companhia.

- …eu fui dar uma volta pelo campo com o meu dono, como fazíamos muitas vezes.

- Foste sempre um sortudo. E eu aqui presa…

- Não me interrompas senão não conto mais.

- Está bem, conta.

- Como disse, íamos pelo caminho fora e de repente senti um cheiro que me lembrou de repente o da Petra, que eu tinha farejado uns dias antes. Fui atrás dele e descobri uma mulher que parecia que se estava a esconder. Nem pensei. Ladrei daquele jeito que tu sabes que faço quando descubro alguma coisa importante.

- Até estou a ficar arrepiada…

- A mulher deu um grito com medo, o meu dono chamou-me também aos gritos a mandar-me calar e disse-lhe para ela ter calma que eu não lhe fazia mal. Nunca me tinha falado daquela maneira. Caí em mim, calei-me  e afastei-me para a sombra duma árvore. Fiquei só a rosnar baixinho, ofendido. Era a mãe da miúda.

- Tens a certeza?

- Duvidas?

- Se tu o dizes. Com esse nariz nunca te enganas.

- E então naquele tempo… Não me escapava mesmo nada.

- E como era ela?

- Bonita. Aloirada. A Petra é a cara dela.

- E tu porque te calaste?

- Sabes que pensei muitas vezes nisso. Foi o meu instinto de cão. Percebi que o melhor para a miúda… olha nem sei bem explicar.

- Calculo…

- Bem…vou dizer-te tudo o que se passou naquela altura. A maneira como o meu dono gritou para mim - nunca o tinha feito assim – o modo como olhou e falou para ela…houve ali qualquer coisa de estranho. Eu tive o pressentimento que ele percebeu logo o que eu tinha descoberto e não quis que eu avançasse…Então calei-me. Ele depois voltou para casa e eu vim atrás dele, a passo, sempre calado. Ao chegar a casa ele ainda me fez uma festa mas eu nem retribui. Estava mesmo ofendido. Ele é polícia tinha obrigação de ter percebido e de ter tido outro comportamento comigo.

- Ainda não esqueceste?

- Não, mas agora já não ligo.

- E achas que ele percebeu que a mulher era a mãe da Petra?

- Hoje já não tenho a certeza. Mas durante um tempo andei convencido disso, porque tudo o que tinha acontecido nesses três ou quatro dias e o que acabou por acontecer mais tarde, parecia que me dava razão. Nesses três ou quatro dias ele já tinha falado com a tua dona várias vezes, com muitos sorrisos de parte a parte (até aí nem bom dia nem boa tarde, lembras-te?) e os dois sempre a falar na miúda… parece-me que nessa altura ele já pensava no que veio a acontecer…

- Quem havia de dizer? Um solteirão daqueles…

- E a tua dona? Não era também uma solteirona chata e emproada?

- Continuas a não a gramares, Petrarca!

- Nunca mais me hei de esquecer daquela vez…e das pedras…Mas enfim, não morro de amores por ela, mas como agora me trata bem e trata bem da miúda e o meu dono gosta dela…já enterrei o machado de guerra há muito, tu sabes.

- Ena! A falares que nem oPetrarca! Muito bem.

- Como é que sabes como falava o Petrarca?

- Essa pergunta é boa. Se tu não fosses tão ciumento eu diria, só para gozar contigo, que tinha sido o Faísca…

- Mau! Mau! Mau!

- Esquece. Agora foi uma brincadeira minha… Mas diz-me uma coisa: nunca mais viste a tal mulher?

- Não. Nunca mais. Durante semanas farejei por todo o lado e nunca mais a vi. Foi embora. Deve ter sabido que a miúda estava bem e desapareceu. Foi melhor assim para todos.

- Sabes Petrarca, há uma coisa que me intriga em toda esta história.

- O que é?

- Porque raio a mãe abandonou a criança num caixote do lixo e não junto à porta duma casa, ou na igreja, ou qualquer outro local onde haveria mais hipóteses de alguém a encontrar?

- Sabes por que sempre simpatizei contigo Marilyn? Porque és muito mais esperta do que pareces…ain, ain, ain…

- Que gracinha!

- Também já pensei muito no assunto e tenho uma teoria para explicar isso. Não sei é se ta devo dizer…

- Deixa-te disso e conta.

- Diz-me uma coisa, Marilyn. Quem te parece que seria capaz de descobrir a Petra ainda com vida num contentor do lixo?

- Tu descobriste.

- Ora aí está. E quem te disse a ti que não era isso mesmo que a mãe da criança queria? Que fosse eu o único capaz de…

- Petrarca! Isso agora é demais. Sei que és muito vaidoso, mas pensares uma coisa dessas… é superior às minhas forças. Sabes o que te digo?

- Cadela desavergonhada que te vou morder uma orelha…

- Não mordes não, que eu fujo. Vou jogar à bola com a Petra e o Ovídeo…

- Isso…tens cá um jeitinho… Se não fosses melhor noutras coisas…ain, ain, ain…

 

Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.   

 

Boa Páscoa!     

publicado por Carapaucarapau às 00:25
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Quinta-feira, 14 de Abril de 2011

Petrarca (parte I)

 

 

 A crise também chegou ao Carapau, com o seu rol de faltas: falta de tempo, de inspiração e de vontade. Por isso e para respirar durante umas duas semanas aqui reproduzo, com pequeníssimas alterações, esta historieta  publicada há anos, lá para trás. Será publicada em dois posts.

 

 (1ª parte - no contentor do lixo)

 

Logo que viu o dono a dirigir-se para o portão que dava acesso à rua, Petrarca, em dois saltos, já estava com o focinho junto à abertura. Pela hora, o dono ia até ao café que ficava ao fundo da rua. Era o primeiro passeio do dia. Logo que sentiu o empedrado debaixo das patas, deu três ou quatro pinotes e dirigiu-se ao primeiro poste onde alçou a perna esquerda. Duas casas mais à frente morava a Marilyn, uma cadela com uma boa pinta, resultado de cruzamentos de raças várias. Também ele era um rafeiro com uma bela apresentação, pelo castanho-escuro e luzidio, fruto de uma vida repousada que vivia com cuidados e também graças ao dono que o tratava acima de cão.

Farejou que a amiga estava no jardim, não a via por causa da sebe alta que protegia a moradia dos olhares curiosos dos passantes, e então faladrou para ela:

- Estás por aí?

- Sabes que sim, porque perguntas?

- Para ouvir o teu doce faladrar…

- Vais dar a tua volta?

- Claro!

- Sozinho ou com companhia?

- Triste y solo – respondeu a dar-se ares de quem faladrava também em castelhano.

- Tens sorte. Só eu não saio daqui…

- Impõe-te.

- É fácil de dizer…

- Então até logo, já me atrasei.

- Tem juízo, olha que… - mas  ele já não a ouviu.

Com uma pequena corrida voltou a ultrapassar o dono e dirigiu-se ao contentor do lixo que ficava mais à frente. Era a segunda paragem obrigatória. Preparava-se para o gesto habitual, quando qualquer cheiro, que não era suposto vir daquele local, lhe entrou pelas narinas e então ladrou para o contentor ao mesmo tempo que se apoiava nas patas traseiras e tentava chegar com o focinho ao cimo. Convém dizer que tinha uma bonita voz de barítono, por vezes com alguns graves de baixo, e com umas modulações que usava conforme as circunstâncias. Marilyn por exemplo dizia que até se arrepiava quando o ouvia ladrar de certa maneira. Também agora, enquanto tentava subir ao contentor, a entoação era especial e diferente do normal.

Isso bastou para o dono, que se aproximava, lhe prestar atenção e falar com ele.

- Que se passa Petrarca? Algum gato aí dentro? – E preparava-se para passar à frente, mas o cão quase lhe puxou pelas abas do casaco, tal parecia ser a sua aflição.

Deu três passos atrás e levantou a tampa do contentor. Estava quase vazio, só com um embrulho lá no fundo. Qualquer coisa embrulhada no que lhe pareceu um bocado dum cobertor cinzento com uma risca vermelha. Não viu mais nada, voltou a fechar a tampa do contentor e preparava-se para continuar o passeio, mas o cão não o deixou. Achou aquela reação estranha, ainda lhe perguntou “afinal o que se passa?”, o cão rosnou qualquer coisa que ele não entendeu, mas resolveu olhar em volta para ver se arranjava um pau ou uma cana para conseguir chegar ao embrulho. Lá conseguiu arranjar um bocado do cabo duma vassoura que por ali estava abandonado, voltou a abrir a tampa e tocou no embrulho com cuidado. Nunca se sabe o que pode estar embrulhado num resto dum cobertor no fundo dum contentor do lixo, e ele, Dr. Nero Moreira, inspetor da Policia Judiciária, sabia disso melhor que ninguém.

Ao primeiro contacto pareceu-lhe qualquer coisa mole e então com cuidado tentou desenrolar o tal pedaço do cobertor. Palpitou-lhe que poderia ser um animal doméstico morto, talvez um cão, talvez um gato.

Também podiam ser trapos velhos. Mas ao puxar a ponta do farrapo eis que surge um pezito de criança. Parou a investigação, fez um telefonema e falou para o Pereira da pastelaria que ficava logo ali à frente no fim da rua. Dois minutos depois já ele estava junto ao contentor. Então os dois, com cuidado, deitaram o contentor e tiveram acesso ao embrulho. Era de facto um bebé recém-nascido e que estava vivo, ainda que aparentemente em mau estado físico.

- O melhor é chamar a doutora Fátima que mora ali no 37 e que é pediatra… - alvitrou o Pereira.

- Então chame-a lá enquanto eu ligo para o 112 e para a Judiciária.

Alguns minutos depois chegava novamente o Pereira acompanhado pela médica e pela Marilyn.

Depois dumas explicações rápidas, levaram a criança embrulhada numa toalha, que entretanto alguém trouxera, para a casa da doutora para fazer um primeiro exame. A cumprir ordens do dono, Petrarca montou guarda ao contentor e aos farrapos. A acompanhá-lo ficou Marilyn de quem a dona, na atrapalhação, se esquecera.

- Foste tu que o descobriste?

- Claro! Quem havia de ser? Tu estavas em casa e o meu dono não tem faro. Se eu não berrasse alto com ele nem metia o nariz.

-E agora?

- Agora é lá com eles.

- Viste se era menino ou menina?

- Ver não vi, mas cheira-me a menina.

- Consegues distinguir?

- E tu não consegues?

- Não sei, nunca experimentei.

- E agora? Ficas aqui comigo ou vais embora?

- Enquanto ela não me chamar fico aqui. Ou não queres?

- Quero, mas não podemos divertir-nos. Estou de serviço.

- Faço-te companhia.

- Estava um lindo dia para irmos dar uma volta pelo campo…

- Como da outra vez?

- Eu queria melhor. Não te lembras o que aconteceu?

- Se lembro! Foste corrido à pedrada e eu fui à trela para casa e fiquei lá presa.

- É verdade. Quando estava mesmo para acontecer o melhor, apareceu a tua dona furiosa a atirar-me pedras. Ia-me acertando a fulana…

- Ain , ain, ain…

- Isso, ri-te agora…

- Estou a lembrar-me dos saltos que davas a fugir das pedras. Mas olha que não achei piada nenhuma, na altura. E depois… foi a partir daí que passou a levar-me ao veterinário e deixei de ter apetites…

- Que apetites?

- De brincar…

- Ah! Eles fizeram-te isso?

- Fizeram.

- E agora?

- Agora… parece que se acabou o nosso turno. Vem ali o teu dono com uns tipos…

- São colegas dele, da polícia.

- Conhece-los?

- Um deles conheço, já esteve lá em casa e meteu-se comigo. Parece ser bom sujeito.

- E que será feito da criança?

- Deve estar lá em casa da tua dona. Ela é médica geriatra disse o Pereira da pastelaria…

- Ain , ain, ain…não é geriatra, é pediatra.

- E o que é isso?

- Trata de crianças. É a especialidade dela.

- Então vais ficar com a miúda lá em casa? Eu é que a encontrei e tu é que vais ficar com ela? Trata-a bem, senão…

- Olha, chegou agora a ambulância. Se calhar vão levá-la para o hospital.

- Lá ficamos sem ela… Vamos nós aproveitar e fazer uma corridinha ali pela praça. Daqui a pouco aparece aí a tua dona a chamar por ti…

- …e a atirar-te pedras.

- Ainda a mordo.

- Não mordes nada. Ela tem aquele feitio mas é boa pessoa.

- Dizes tu que não foste corrida à pedrada como eu.

- Sabes o que a minha dona disse de ti?

- Ela fala de mim? A propósito de quê?

- De ti e do teu dono. Há tempos estava a falar com uma amiga e disse que o teu dono deve ser meio esquisito. Ele tem nome de cão e tu é que tens nome de gente.

- Ai sim? E não disse mais nada?

- Disse. Explicou que o Petrarca foi um poeta importante e que o Nero foi um imperador romano, mas que era meio bruto e que é costume dar o nome dele aos cães…

- O que tu sabes Marilyn…

- Ouço e fixo. E como era sobre ti, prestei mais atenção.

- O meu dono também já falou da tua dona a uns amigos e não foi para dizer grandes coisas. Disse que ela devia ser uma chata, sempre muito senhora do seu nariz e que não era uma boa vizinha…

- Ain, ain, ain…ela diz o mesmo dele…

- E é caso para dizer que agora têm a criança nos braços…

- E se ficassem com ela?

- Não podem. Agora vão levá-la para o hospital. Depois se ela viver…

- Vai viver pois. É saudável.

- Como sabes?

- Sei. Não esqueças que fui eu que dei com ela. Pode estar fraquita mas vai viver.

- Se não fosses tu…

- Sim. Concordo que foi a sorte dela. Outro não se tinha apercebido ou não ligava importância.

- Sim senhor Petrarca. Deve ser por seres poeta e humanista…

- O que é isso?

- Era o Petrarca. Com o nome herdaste-lhe as qualidades.

- Olha. Já lá vem a tua dona. Pira-te já senão amarra-te o resto do dia.

- Não amarra não. Repara que ela já me viu aqui e ainda nem me chamou. Vai falar com o teu dono e com os outros polícias.

- Até estou admirado.

-Vamo-nos chegando para tentarmos saber novidades.

- Vamos.

 

                                                                                                                               (Continua…)

 

 

Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.        

publicado por Carapaucarapau às 11:45
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Quinta-feira, 7 de Abril de 2011

Anedota

                                 

 

 

O que é a felicidade?

Esta pergunta está na base duma célebre anedota baseada nas conversas entre um barbeiro e os seus clientes.

Depois de bem recostado na cadeira do barbeiro, já com o babeiro atado ao pescoço e depois de dizer que queria “cortar um bocadinho por todo ele, não rapar muito atrás, dar um toque nas patilhas…” o cliente era confrontado com a sacramental pergunta:

- V. Exa. é feliz?

Apanhado de surpresa e sem saber o que responder ao Fígaro, o cliente lá arranjava uma resposta, em geral entre o “nem por isso”, o “sou mais ou menos” ou o “não sou nada”.

Para estes a resposta do barbeiro era:

- Mas isso não é motivo para não felicitar vivamente V. Exa. pois nos tempos calamitosos que vão correndo a felicidade é coisa bem difícil de alcançar!

Era portanto um barbeiro que fazia jus à profissão e à fama, pois é conhecida a verborreia de tais profissionais.

Um dia apareceu um cliente que à pergunta “V. Exa. é feliz?” respondeu “sim, sou muito feliz” e apanhou com a lenga-lenga habitual:

- Mas isso é motivo para felicitar vivamente V. Exa. pois nos tempos calamitosos que vão correndo, a felicidade é coisa bem difícil de alcançar.

O freguês deu um salto na cadeira, levantou-se e, de pé, frente ao barbeiro, respondeu:

- A isso obtempero eu, que à inconsequente calamidade dos tempos que vão correndo, há que opor a serenidade do pensamento humano, que sirva cabalmente as razões imperativas dos nossos desejos.

Reza a anedota que este último freguês também era barbeiro.

 

A verdade é que tenho pensado no que eu responderia se apanhasse o tal babeiro pela frente (o barbeiro dono da barbearia, não o barbeiro cliente).

Se calhar, dependendo do dia, da hora, e do horóscopo, responderia como a maioria, dizendo que não tenho muitas razões de queixa.

Mas pensando melhor, olhando em volta e vendo o que me cerca, a maneira como já vivemos no presente e o que nos espera já ali à esquina, a falta de perspetiva para o futuro próximo (e o longínquo já não me diz muito), vendo o cardume de carapaus já com as escamas a cair e o dos jaquinzinhos todos vivaços, mas que nem se apercebem em que águas terão de nadar, tenho uma grande vontade de mandar o barbeiro à merda mai-la sua pergunta, de arrancar a toalha à volta do pescoço, de deixar crescer o cabelo ou cortá-lo à pedrada e gritar-lhe a minha profunda tristeza por ter nascido aqui neste mar poluído pela desonestidade desenfreada, pela incompetência generalizada, por pertencer a um cardume que não escolhi e por não ter sido arrastado numa das várias ocasiões em que o poderia ter sido e consegui escapar.

Depois, penso em algumas pequenas felicidades que também vou tendo, confronto-me e conforto-me com certas atitudes que vou tendo e acabo por sorrir com a anedota dos barbeiros.

E escrevo mais um post, que é exatamente o retrato da situação que estamos condenados a viver: uma anedota.

Pela segunda vez, merda!

 

 

 Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.        

publicado por Carapaucarapau às 15:48
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