Zona de Mértola. Rodeado de lã por todos os lados
Há dias, num dos concursos de televisão, daqueles de perguntas de “coltura giral” e que são óptimos para avaliar o tal grau de “coltura” da “pipulação”, foi posta a seguinte questão:
Mértola é banhada por que rio? Hipóteses dadas: Douro, Tejo; Mondego ou Guadiana.
Claro que o concorrente, que era dos tais que representava bem a média dos concorrentes, respondeu Tejo.
Eu já nem fico triste com as figuras tristes dos outros. Já me vacinei há muito contra essa doença. Mas serviu o episódio para me lembrar de uns outros episódios que me aconteceram em Mértola e arredores, ou relacionados com Mértola, ao longo dos tempos.
A 1ª vez, era eu “menino e moço”, fui em trabalho profissional e “vi-me obrigado” a passar a noite numa herdade (aliás rodeado de todo o conforto). Acordei a meio da noite sobressaltado com o “barulho do silêncio”. Foi a 1ª vez que tive essa experiência. Já tinha lido que isso pode acontecer a quem esteja habituado a um certo nível de ruído e um dia acorda quando o silêncio é absoluto.(Era também o que acontecia com o guarda da passagem de nível que acordava quando o comboio das 4h e 30 se atrasava. “Faltava-lhe” o barulho à hora certa e isso acordava-o).
De outra vez que passei por Mértola, vinha de visitar o “Pulo do Lobo”, no Guadiana, a uns quilómetros a norte da vila, e apontei para lá ir almoçar.
Dei uma volta, debrucei-me na “varanda” sobre o rio e como eram horas de almoço, procurei onde comer qualquer coisa. Um restaurante com um grande letreiro à porta onde se lia “Hoje há açorda de bacalhau” lembrou-me que estava no Alentejo e que uma açorda não ia nada mal. Entrei. Éramos duas pessoas e o restaurante estava vazio. Ainda era relativamente cedo e nós os primeiros clientes do dia. Sentamo-nos e pedimos 2 açordas de bacalhau. Ao fim duns 20 ou 25 minutos ainda não tínhamos sido servidos e chamei a funcionária. Reclamei pela demora. Pediu um momento e foi ver o que se passava na cozinha. Voltou um minuto depois e disse muito calmamente: “ Afinal não temos bacalhau. Pode ser uma açorda de pescada?” Olhei para ela como o concorrente do concurso da TV deve ter olhado para a pergunta e devo ter pensado o mesmo que ele: “que vou responder?”. Eu ia passar uns dias de férias e não me estava para chatear. Levantei-me e saí.
Uma outra história teve a ver com as lampreias do Guadiana. Um dia, numa conversa com um amigo, disse-me ele que nesse dia ia ter um jantar de lampreia e eu respondi-lhe que não gostava de lampreia. Só tinha comido uma vez e não tinha gostado. Ele ficou muito admirado e disse-me que se eu não gostei devia ser porque não estava bem cozinhada. Fui então convidado a ir jantar com ele que morava então na casa dum casal de primos, mais velhos e para quem ele era quase um filho, e a prima era uma excelente cozinheira e sabia toda a técnica para arranjar a lampreia, pois era uma minhota da zona delas. A lampreia era do Guadiana como já disse, da zona de Mértola, o que muito me admirou pois nessa altura eu julgava que o apreciado ciclóstomo só existia nos rios do norte.
Fui, comi, apreciei e “fiquei freguês”. O jantar correu animado e veio à baila a maneira como eu tinha conhecido o casal, uns meses antes.
O episódio do nosso conhecimento foi assim: “num domingo de fim de Primavera” almocei com esse meu amigo no local onde era habitual almoçarmos e depois duma ida ao café, e atendendo ao calor que fazia, ele desafiou-me a ir “a casa dele” para ver um desafio de futebol que havia nesse dia com a selecção. Eu disse que não queria incomodar os primos, que eu não conhecia ainda, e que certamente quereriam estar à vontade. Ele disse-me que os primos tinham saído e só voltariam ao fim do dia. Acabei por ir. Sentamo-nos em frente à televisão, ele serviu uns digestivos e assim começamos a ver o jogo. Entretanto, a digestão do almoço foi-se processando, o álcool foi fazendo o seu efeito a comodidade do maple foi amolecendo a atenção e entrei naquela fase de abrir os olhos e logo os fechar, de olhar mas não ver, de ouvir mas já não ligar. Sonolência completa. Ao intervalo recordo-me do meu amigo dizer qualquer coisa como cigarros que tinham acabado, de ter de ir à rua, que voltava já. Ele saiu e eu adormeci instantaneamente. Muito tempo? uns minutos, certamente. Acordei e dei um salto pois tinha à minha frente um senhor alto que eu nunca tinha visto a perguntar-me o que estava eu a fazer ali. Naqueles segundos eu não sabia onde estava, não sabia se tudo aquilo era um filme ou o se estava a sonhar. Valeu-me o meu amigo que nesse momento meteu a chave na porta vindo da rua com o tabaco. Ficou tudo esclarecido. O Senhor era o primo, o dono da casa que, juntamente com a mulher tinha regressado mais cedo do que estava previsto e que ficaram muito admirados por ver um ilustre desconhecido a dormir na casa deles, em frente à televisão. Ficamos amigos e daí para a frente várias vezes fui convidado a ir lá a casa, quando havia uns petiscos.
A ligação desta história com Mértola claro que foi feita pela lampreia.
A foto foi tirada no dia do episódio da açorda de bacalhau, fez há dias precisamente 12 anos. Fui envolvido, em plena estrada por um rebanho de ovelhas. Rebanho pequeno se comparado com outro que vira uns minutos antes e que tinha umas 3000 ovelhas, conforme me informaram os responsáveis por ele.
O Douro visto da Quinta - margem direita, com a linha da CP - Linha do Douro
Em frente, margem esquerda, a marina fluvial junto às Termas de Aregos
A entrada para o pátio da Casa, sede da Fundação Eça de Queiroz
Todos conhecemos vários tipos de cassetes. Basta ir a um museu, a uma visita guiada aqui ou ali, a uma “exposição de coisas expostas”, que para isso se fazem exposições ou “instalações”. Hoje alguns artistas plásticos já não fazem exposições. Fazem “instalações”. Esse trabalho dantes era feito por electricistas, canalizadores (ou picheleiros para as gentes do norte) ou similares, mas agora são feitas por artistas plásticos (alguns são mesmo de plástico, mas isso já é a minha barbatana dorsal a desfazer…)
Há ainda as cassetes das meninas e meninos que nos telefonam da PT, da ZT, da OPT, desta, daquela e daqueloutra e, se lhe damos corda, despejam a cassete toda e voltam ao princípio se não carregarmos no off.
Estava eu a falar de cassetes e entretanto comecei a divagar, que nestas coisas há quem vá divagar e quem vá depressa, sendo que eu tenho dias.
Isto tudo para dizer que no mês passado, andava eu pela margem direita do Douro a ver se ainda vindimava qualquer coisa que tivesse ficado esquecida, resolvi visitar a “Quinta de Tormes”, ou seja a quinta onde está instalada a Fundação Eça de Queiroz. Foi a 2ª tentativa, porque na anterior, há um ano atrás, tinha batido com o focinho na porta, pois cheguei já fora do horário das visitas.
Fui ciceronado pela funcionária da Fundação, que ali está para isso mesmo. Foi a última visita do dia e éramos dois “ilustres visitantes”. Levou 1 hora a visita, ainda que a “casa” seja pequena. Mas Eça dá sempre pano para mangas (compridas). Eu sei umas coisas sobre a obra e o homem e como éramos só duas pessoas tentei por várias vezes dialogar em vez de “ouvir a cassete”. É certo que conseguia isso por uns instantes, a funcionária até sabia umas coisas “fora do roteiro”, mas nunca a consegui desviar totalmente. Após cada interrupção, voltava atrás e recomeçava a lenga-lenga no ponto onde a tinha deixado.
Se é normal que um cicerone, que fala para um grupo de pessoas, muitas vezes com graus de cultura, conhecimentos e interesses diferentes, “debite a cassete” e seja pouco receptivo a ser interrompido por um ou outro mais curioso e interessado (isto para o bom funcionamento duma visita), também não é menos certo que quando o “grupo” se resume a uma pessoa ou duas (mas que se conhecem), é difícil aguentar uma tal lenga-lenga. Ainda por cima a funcionária era competente, conhecedora do assunto, simpática e tinha um Carapau pela frente…
Mas a cassete tem muita força!
Se o Eça fosse vivo, certamente não aguentava a visita.
Já agora e para terminar: “Tormes” não existe (“Tormes não existe, sei-o bem, estive lá”). O nome foi inventado pelo Eça em “A Cidade e as Serras”, mas hoje a Quinta da Vila Nova (onde está a Fundação), é mais conhecida por “Quinta de Tormes” e na própria zona (concelho de Baião) há umas placas a indicar que por ali é Tormes. A CP também mudou o nome da estação do caminho-de-ferro de Aregos para Tormes. Quer isto dizer que a ficção mudou a própria realidade, coisa que o Carapau não consegue fazer, senão outro galo cantaria...
“Tormes”é também a marca com que é comercializado o vinho produzido na Quinta e sua principal fonte de rendimentos, vinho verde branco já na zona de transição para os vinhos maduros do Douro.
(Informação gentilmente fornecida por Carapau, que muito irá beneficiar a Fundação. Tudo isto, claro, na esperança que me cheguem umas garrafas aqui à caverna, à borla, que as que trouxe tive de as pagar).
A 3ª janela
Também a janela da direita tem uma história na vida de Zé Pedro. Durante anos foi a janela do seu quarto e nela viveu um ano trágico, quando o médico o obrigou a permanecer no leito durante meses, com uma doença que em outros tempos poderia ter sido fatal. Ano difícil esse, em que “marcou passo” na vida, mas que lhe ofereceu tempo para ler tudo o que lhe vinha ter à mão e onde, através da rádio, passou a tomar consciência do que se passava pelo mundo, e de como nem tudo era como ele pensava. Tinha então uma vida pela frente e não foi fácil ser o alvo das preocupações e atenções de toda a família, ele que desde os 15 anos se tinha habituado a viver a maior parte do tempo fora dela. Ano triste mas de amadurecimento, assim pensa Zé Pedro ainda hoje.
A 4ª janela
Com as três janelas anteriores, Zé Pedro costuma lembrar ainda uma quarta, que ficava nas traseiras, ao cimo das escadas de serviço. Nela costumava aparecer o avô, ao fim da tarde, quando estava bom tempo, para saber “as últimas”. Raramente entrava, pois em geral, ficava do lado de fora a ouvir as notícias. Dele, o único avô que conheceu, herdou além do nome, algumas qualidades e certamente todos os defeitos, como por exemplo a persistência, que muitas vezes era teimosia, que raramente o levava a desistir de qualquer coisa. “Se os outros fazem eu também sou capaz de fazer” – era o lema do avô.
Morreu no dia em que o neto começou a trabalhar e recomendou para não lhe dizerem nada para ele não faltar, logo nos primeiros dias de trabalho.
Assim foi feito. Só dois dias depois Zé Pedro recebeu uma carta com a notícia e com a recomendação para não se esquecer de passar a usar uma gravata preta. O neto sempre viu nessa coincidência de datas como que o passar do testemunho, como se os dois fizessem parte duma corrida por estafetas.
Algum tempo depois, Zé Pedro deixou o velho casarão e nunca mais lá entrou. Agora olha para ele, de fora, a partir da varanda do prédio do outro lado da rua, sentado no mesmo local onde seu Pai se costumava sentar nos últimos tempos de vida e onde tiveram algumas conversas, que recorda frequentemente.
Olha para o velho casarão e vê, às vezes, coisas que já lá não estão. Como o velho cartaz, pregado numa esquina, a informar das vantagens de se empregar o “Nitrato do Chile” na agricultura, mais tarde substituído por outro a gritar as delícias do “Licor Beirão”.
E, talvez para não se esquecer dessas delícias, vai voltando sempre que pode.
O velho casarão
(ou a vida de Zé Pedro, contada por janelas)
É um velho e grande casarão de meados do século XIX, que dever ter vivido os seus momentos de glória, depois tornou-se menos glorioso e mais útil (para as quatro famílias que nele viviam e para quem dele recebia as rendas) e teve o seu declínio, que o levou perto da ruína. Hoje, quase reparado e recomposto, mostra-se outra vez pronto a resistir outros 150 anos. Perto dele estão mais quatro casarões sensivelmente da mesma época e os cinco formam o casco antigo da aldeia.
O velho casarão tem r/chão e 1º andar e no conjunto apresenta 32 aberturas (portas e janelas) para o exterior.
Só três dessas janelas, ao nível do 1º andar, dão para a rua principal da aldeia.
Sentado no seu canto, na varanda do prédio que fica em frente do casarão, no outro lado da rua, Zé Pedro só vê estas três janelas viradas a poente.
E lembra como elas estão ligadas à sua vida.
A 1ª janela
Pela 1ª janela, a que fica à esquerda e que pertence a um quarto, ele viu pela primeira vez a luz do dia, tal como também viu e foi visto pela primeira vez pela Mãe.
Uns vinte e cinco anos depois, no mesmo local, também se viram pela última vez, numa despedida que fizeram como se fosse “mais uma”, mas ambos sabendo que era a última.
“Daqui a uns dias dou aqui um salto”, disse ele a tentar aliviar a despedida e a pensar que mentia pela última vez. Voltou sim, mas já não era Ela que o esperava, mas uma pequena multidão que o aguardava para se dar início às cerimónias fúnebres.
Nele lutou contra as doenças infantis. Lembra-se das “bexigas doidas” e do sarampo. Ainda hoje uma pequena cicatriz no nariz, lhe lembra esses tempos.
A 2ª janela
É a janela do meio, a que tem uma pequena sacada com guarda de ferro forjado ainda original, e está ligada à sua infância e adolescência. Janela da ampla sala de jantar, mas que só era utilizada em dias de festa ou quando havia visitas de mais cerimónia, nela Zé Pedro praticara, na sua infância, os seus actos de rapina. Fazia então verdadeiros exercícios de alpinismo para chegar às compoteiras (que estavam sempre nos pontos mais altos dos móveis “et pour cause”), onde com os dedos (e muito na ponta dos pés) conseguia levantar a tampa e mergulhá-los nas compotas e geleias, para depois os chupar e assim satisfazer a sua gulodice. Até que um dia a tampa duma das compoteiras saiu do seu controle e chegou ao chão primeiro que ele, com duas consequências que vieram alterar o rumo da história. A dela, da tampa, que foi para o lixo partida em mil pedaços, e a dele que, uma vez descoberto, teve de deixar a sua proveitosa e doce actividade de rapina.
Uns, poucos, anos mais tarde a grande mesa no centro da sala, que era desdobrável, serviu durante muito tempo de mesa de ping-pong onde ele e os irmãos se aperfeiçoaram na arte das raquetes, onde disputavam renhidos campeonatos, que invariavelmente acabavam em pancadaria, mais por discordância quanto a interpretação das regras, do que por falta de fair-play…
Mais tarde haveriam de derrotar alguns temidos adversários que foram encontrando pelo caminho e que não sabiam destes intensos treinos a que se dedicaram durante alguns anos.
(continua…)