O pêssego
O homem a olhar para o pêssego que estava num ramo alto:
- Se te chegar, como-te. - E fez uma careta, ao saltar para o apanhar.
O pêssego, ao ver o homem desdentado:
- Arranja primeiro a dentadura, que eu sou dos de roer!
Vitória de Samotrácia (que não tem nada a ver com o post, mas fica aqui para dar cor e elevar o nível)
Vitória
Vitória (Bitória para os vizinhos) era um pedaço de carne da perna de lhe se tirar o chapéu e qualquer fabiano que passasse por ela não deixava de a medir de alto a baixo, ostensivamente os mais destemidos, de ladegues os mais tímidos.
Mas, ardida como era, nem qualquer um tinha competência para apagar tal fogo e desses menos ainda faziam o rescaldo convenientemente.
A um ou outro que não fechava bem a mala e que se atrevia a dar-lhe trela a tentar cair-lhe nas graças, respondia à maneira, não os deixando esticar muito. Dar trela a alonsos e totós não era para ela, que se podia dar ao luxo de escolher quem lhe enchia o olho e mesmo assim, olha lá, não eram muitos os que se aguentavam mais que o sebo de uma vela, outro sim é dizer, que não se aguentavam muito nas flautas.
Ninguém lhe apontava defeitos e na vizinhança, mesmo conhecendo-lhe o feitio e os gostos, ninguém a considerava uma da micas-da-boa, pois era feita de outro barro. Vivia nas Fontainhas com a mãe, já velha e considerava os vizinhos como se da família fossem, isto é, sem hipóteses de sonharem em levar dali alguma coisa para além de um bom dia ou uma boa tarde. Claro que eles mediam-na de alto a baixo a tirar-lhe as medidas a olho, ainda que o que gostariam era mesmo de a medirem com a fita métrica, feitos costureiros de alta-costura. Quando as escadas de abrir não estavam por perto, havia sempre um ou outro que contava vantagens, mandando uns bitaites a dar-se ares de já ter provado do bom, quando nunca tinham passado dos coiratos e dumas tripas de vez em quando e olha lá!
Vitória aviava os cabritos que escolhia com a mesma competência com que aviava sandes de presunto e negus ou neguinhos na tasca da travessa dos Congregados, onde trabalhava, mas eram raríssimos os que tocavam aquela gaita-de-beiços durante muito tempo. Entenda-se, para não ficarem dúvidas, que não era mulher de andar ao engate ou de fazer qualquer coisa por arame. Para isso trabalhava. Aos azeiteiros despachava-os a alta velocidade, nem que para isso tivesse de arriar a giga. Tinha lábia para dar e vender e não lhe davam a volta com facilidade. Das poucas vezes em que apranchou com um ou dois foi sol de pouca dura. Antes só, que aturar por muito tempo, quer fosse um artolas, quer fosse algum a armar-se em Zé de Sousa, daqueles que só têm letra, a cantarem loas aos respectivos pífaros de carcela.
Raramente passava atestado a um ou outro mesmo que prestasse boas provas e só uma vez se enganou bem enganada com um finguelas que lhe deu água pela barba e a deixou dois ou três dias a pão e laranjas. Mas a esse nunca mais viu. Pelo falar não era menino da zona, mas sabia a música toda de cor e salteado, aquilo sim é que era tocar!
O normal era eles, passado pouco tempo, já não terem unhas para tocar e vazarem antes de começarem a roer o sabugo. Davam corda aos vitorinos e faziam-se ao largo.
Gostava particularmente dos bem encadernados e com boa tabuleta, mas não tinha problemas em bater no Siska, se as coisas não corriam a contento. Alguns, só de lhe olharem para o coxame, arregalavam os olhos e ficavam com eles maiores que a barriga, sinal evidente de que não valia a pena perder muito tempo a dar-lhes trela.
Nunca se negava a uma boa conversa, por mais lábia que o fabiano ou o fidalgote tivessem e desconcertava-os com as suas labrecas. No entanto, em serviço na tasca, não os deixava esticar muito, fiel ao princípio que trabalho é trabalho e conhaque é conhaque.
Pássaros bisnau a pedir cheguinhas nem resposta levavam, que apesar do seu afogueamento, não era mulher de solheiro e dava-se ao respeito.
Assim era a Vitória (Bitória para os vizinhos).
Este texto explorou, como se nota, um certo tipo de calão. Muito está generalizado de norte a sul, outro é mais confinado ao Porto e arredores. Socorri-me, nestes casos, do glossário publicado no livro “Porto-naçom de falares” de Alfredo Mendes, da Âncora editora.
Da série contos curtos, o 2º
Lógica
- O Saramago morreu!
- Morreu sim. Quem te disse?
- Ninguém. Vi na televisão. Quem era ele?
- Era escritor. Aqueles livros ali foram escritos por ele. E escreveu mais ainda.
- E os outros livros?
- Foram escritos por outros escritores.
- E também já morreram?
- Olha…a maior parte deles já.
Um momento depois:
- Eu não quero aprender a escrever!
Nesta época de dias longos e ideias curtas e de temperaturas altas e imaginação em baixo, para não deixar o blog sem actividade, o Carapau vai iniciar um período de pequenos contos, inspirados na melhor escola americana da short story. “Iniciar” pressupõe que haja continuação, mas aqui neste blog, iniciar quer dizer apenas iniciar e nada mais. A continuidade está dependente, entre outras coisas, da temperatura ambiente.
Vamos então ao 1º conto da série.
Drama nocturno
- Bzzzz…bzzzz…bzzzz.
Tchap!
De manhã a almofada apresentava uma mancha de sangue.
(foto tirada da net)
PARA TODOS, antes de começarem a ler este post é conveniente que saibam o seguinte:
Este texto foi escrito por mim e pela Maria Teresa. Nunca nos vimos, nunca falámos sequer ao telefone, foi um desafio que lançámos um ao outro e, cada um de nós, a si mesmo.
Por messenger, combinámos a metodologia a seguir, o texto foi escrito através de mails e não combinámos previamente o tema. Um de nós escrevia um bocado, o outro tomava conhecimento e dava continuidade, não alterámos a ordem da escrita. No total “ A ÚLTIMA GOTA!” tem 5 “pedaços”. O último, o fecho da história, não é igual em ambos os blogues … aqui encontram o meu final, no blogue da Maria Teresa encontram o dela. Vão até lá! É um desafio.
A ÚLTIMA GOTA!
Já não aguentava mais! Tinha decidido uns dias antes que seria a última vez. Uma resolução tomada com a firmeza de quem sabe o que tinha que fazer. Só que quando chegava a hora, em que podia tomar uma medida drástica, falhava. Começava a sentir-se muito irritada e insegura. Aventou a hipótese de pedir ajuda a alguém que soubesse como devia proceder. Ao mesmo tempo tinha vergonha, vergonha por não ser eficaz na resolução dos seus problemas. Sim! Porque era um problema que tinha entre mãos.
Mas hoje ia acabar com aquela situação. Largou tudo em cima da mesa, saiu de casa e começou a caminhar apressadamente. Ou resolvia tudo nesse dia ou nunca mais tinha coragem para se olhar ao espelho. Sempre queria ver quem levava a melhor. Se ela, se o malvado. Uma vida toda a ser escrava e sem forças para reagir? E logo ela que já tinha enfrentado tantos problemas na vida? Não! Não passaria desse dia. E apressava mais o passo à medida que tinha estes pensamentos.
Ia tão distraída que nem reparou que levava os chinelos de quarto calçados. Notava que algumas pessoas por quem passava a olhavam de um modo diferente e pensava: será que no meu semblante se nota a minha perturbação? Aquele demónio tem tanto poder que até consegue que eu seja notada, quando queria passar despercebida?
Começou a diminuir o ritmo das passadas e a tentar reflectir, mais serenamente, em tudo o que tinha feito e aturado durante os últimos dias. Ainda por cima na sua casa, no lugar onde sempre se tinha sentido protegida e longe dele e de outros como ele…
Quando deu por si estava fora da povoação, a caminhar por uma estreita vereda que ela no entanto bem conhecia. Passado algum tempo, depois duma curva, deu de caras com o Vitorino, que sentado numa pedra, fumava um cigarro, com a espingarda ali ao lado encostada a uma árvore.
- Que fazes por aqui? Perguntou ele mais espantado do que se lhe tivesse aparecido um bando de perdizes.
- Nada. Passeio e apanho ar.
- Pareces cansada. Senta-te aqui e bebe um pouco de água – e ele levantou-se com o cantil na mão e caminhou para ela.
- Não te chegues ao pé de mim! Gritou ela enquanto começava a correr, deixando-o espantado, de braço estendido, segurando o cantil pelas correias.
Depois de correr uns minutos ela não aguentou mais e deixou-se cair à sombra de uma árvore. Sentia-se mal disposta, o sangue a latejar-lhe nas têmporas, tinha muita sede e de repente teve um vómito. Ficou assim uns minutos e lentamente foi acalmando. Depois levantou-se e pôs-se a caminho de regresso a casa, penosamente. Foi pensando nos últimos acontecimentos e acabou por dar razão aos amigos que ainda na véspera a tinham massacrado com conselhos. Mas não gostava que se metessem nos seus problemas e isso incomodava-a. Quando entrou em casa, bebeu um copo de água em pequenos goles e deitou-se sobre a cama. Estava transpirada, mas agora sentia-se um pouco melhor. Adormeceu assim mesmo. Acordou sobressaltada a gritar “sai daqui, não te chegues perto de mim”. Tinha sonhado com Vitorino a caminhar para ela, de cantil na mão e com um maço de tabaco a sair do bolso da camisa. Era um pesadelo. Estava com sede e com fome. Dirigiu-se à cozinha e a primeira coisa que viu foi o maço de tabaco em cima da mesa, para onde o tinha atirado, ao sair. Pegou nele, foi à casa de banho, rasgou-o com gana, atirou tudo para a sanita e puxou o autoclismo.
Depois voltou para a cozinha para beber e comer qualquer coisa.
Foi assim que passou o dia em que deixou de fumar.