Sexta-feira, 26 de Março de 2010

Gente (VI)

Senhora D. Sónia

 

Quando a conheci andaria eu pelos 27/28 anos e ela devia estar a chegar aos 40. Era uma senhora fisicamente “muito interessante” e andava sempre irrepreensivelmente vestida, penteada e maquilhada. Quando alguém se cruzava com ela não passava despercebida e inevitavelmente era “medida” de alto abaixo com o olhar, quer pelos homens quer pelas mulheres. Reparei nisso algumas vezes. Notava-se que ela percebia essa atracção que exercia sobre as outras pessoas, mas tinha em público um comportamento discreto e irrepreensível, sempre de braço dado com o “amantíssimo esposo”.

Aqui começava a primeira dúvida do seu, mais ou menos restrito e seleccionado, círculo de visitas. Havia quem dissesse que o senhor com quem aparecia em público era marido, havia quem se ficasse por companheiro, outros por amante e havia os mais ousados que se lhe referiam como guarda-costas ou simplesmente chulo. Fosse o que fosse, também ele tinha um comportamento dum Senhor, sempre bem arranjado e aprumado.

Eu conhecia os dois, sem os conhecer. Conhecia-os de vista, encontrei-os muitas vezes, apreciei-lhe o físico (à Senhora D. Sónia, é bom de entender), mas não era do seu círculo de visitas.

A Senhora em questão, é altura de o dizer, era Puta. Com P maiúsculo, diga-se desde já atendendo às considerações atrás feitas e atendendo ao seu porte, mas também à classe com que recebia os seus convivas, não me atrevo a dizer clientes, que isso é de puta de baixa extracção.

Como sei tudo isto e mais o que adiante direi, interrogar-se-á quem porventura estiver a ler isto e seja um espírito dado à curiosidade e à desconfiança. Sim, por que saber assim coisas sem ter ido ter ao “âmago” da questão, pode levantar dúvidas e suspeições e pensar que afinal o relator é um tratante e tudo isto é inventado.

Pois bem, sei tudo por interpostas pessoas, minhas amigas, que além de interpostas eram elas postas frente à realidade que era a D. Sónia, deixando eu agora cair o “Senhora” só para abreviar e aligeirar o tratamento. Aliás na intimidade era Sónia para aqui, Sónia para ali, ela dispensava outro tratamento, o que se compreende. Não sei, suponho que nenhuma das suas visitas sabia, se Sónia era mesmo o seu nome de baptismo, se era tão só nome de guerra. Fica só este registo aqui. Por Sónia era conhecida.

Vivia num andar numa das ruas mais conhecidas da zona que então era conhecida por “Avenidas Novas”, em Lisboa, rua larga, bem delineada, com árvores. Em frente ao prédio onde morava havia uma praceta recatada com um pequeno mas aprazível jardim.

Eu passava quase diariamente por essa rua, pois era um dos acessos a uma outra rua onde então morava. A razão destes pormenores está no facto de eu encontrar muitas vezes, a dar voltas à tal praceta com jardim, o acima apresentado Senhor “amantíssimo esposo” da Senhora e que afinal podia ser muitas outras coisas. Mas morava com ela, isso era certo. Agora um pormenor arquitectónico. As casas de banho do prédio tinham janelas redondas, daí o serem conhecidas por “óculos”. Isto é só uma curiosidade, mas dava muito jeito ser assim, pois não se confundiam com as outras janelas e deste modo evitavam-se enganos. E o “esquema” da Senhora era o seguinte: óculo iluminado significava D. Sónia ocupada a receber um conviva e, desde logo, não valia a pena nenhuma outra tentativa de contacto e o tal Senhor também não podia subir para casa. E quando assim acontecia (e para bem dos rendimentos do casal, acontecia sempre, ou quase sempre) o “nosso homem”, salvo seja, dava voltas à praceta. Era então que eu, ao passar na rua, já um pouco tarde por vir por exemplo do cinema, o via naquela via-sacra, a fazer tempo para que o óculo se apagasse, sinal de que tinham terminado as tarefas diárias da Excelentíssima. Em geral não passava da 1 da manhã. D. Sónia era rigorosa no horário de trabalho que só começava pelas 4 da tarde até à 1 da manhã, no máximo. Com intervalo de umas 2 horas para jantar, que aquilo era casa com ordem.

Para além da “conversa” que se supõe que tivesse com os “convidados”, havia sempre um cálice de Porto ou um copo de whisky à disposição, para adaptação ao ambiente (adaptação ao relvado dir-se-ia hoje em termos futebolísticos). Era assim que D. Sónia trabalhava, perdão, recebia (para além de receber de outra maneira, mas isso já são assuntos de contabilidade que não fazem parte desta descrição).

Segundo as tais testemunhas oculares que me relatavam o que “lá” se passava, convém dizer que D. Sónia se apresentava sempre bem vestida e arranjada e não de roupão para “adiantar serviço” como alguém poderá estar a imaginar. O despir já fazia parte do menu, assim como as bebidas.

D. Sónia não recebia aos fins-de-semana e eu encontrei o casal muitas vezes em cinemas, teatros e outros acontecimentos mais ou menos culturais/mundanos. Sempre irrepreensivelmente vestidos e de braço dado.

Claro que muitas vezes havia nesses acontecimentos alguns dos seus convivas. Nunca notei um olhar de soslaio, um sorriso disfarçado, um qualquer trejeito. Sempre uma irrepreensível conduta em público. Convém dizer que cada novo conviva tinha de ter um “padrinho” para ser aceite e esse padrinho seria um visitante habitual a quem D. Sónia reconhecia o direito para lhe “recomendar” alguém. Depois pelo telefone era marcada a “recepção” e a respectiva hora.

Tive direito a conhecer esse número de telefone que era de acesso restrito, cheguei a ter padrinho, mas nunca fui baptizado. E só por um motivo o não fui. Não pela marca do whisky ou do Porto, mas porque havia 3 ou 4 amigos que “frequentavam” os salões de D. Sónia, o que para mim já me parecia mais uma casa de família do que outra coisa. E há coisas que não ficam bem fazerem-se com a família, sobretudo quando à saída há uma salva de prata à espera de um qualquer “óbolo para os pobrezinhos”…

Óbolo esse que estava estipulado nos regulamentos da casa, obviamente.

Esta a história breve da Senhora D. Sónia que me propus contar.

 

Mas não resisto a acrescentar uma cena em que a Senhora é o motivo da conversa, mas não entra na acção.

Uma tarde estava eu a almoçar com um colega de trabalho, muito mais velho do que eu e até do que da D.Sónia e que era um boémio da velha guarda que conhecia este mundo e o outro, quando entra nesse restaurante a Senhora mai-lo o seu Senhor. Sentaram-se e prepararam-se para almoçar também.

Foi então que os olhos do meu colega brilharam e me disse mais ou menos isto:

-“Tenho encontrado aquele casal muitas vezes sobretudo nos cinemas e nos teatros. Nunca falham as estreias das revistas. Ela tem uma classe extraordinária e são um casal perfeito. Mas não sei quem são e nenhum dos meus amigos sabe. Ele deve ser administrador ou dono de alguma empresa. Devem ter muita “massa”.Que acha dela?”

-“Acho bem, é uma brasa e tem muita classe. Eu também os tenho visto por aí e tenho uns amigos que os conhecem. Ele é de facto um administrador” – e disse isto tudo com o ar mais sério.

-“Ah! Logo vi”.

E mais não disse. Fiquei a gozar, por dentro, com o facto de eu saber tudo dela e o engatatão mor do reino e o boémio das mil namoradas, nem de longe imaginar quem estava ali.

Acabei por lhe recordar esta cena bastantes anos depois, quando já ele estava “retirado” e suponho que a D. Sónia também e contei-lhe a história da Senhora.

Não queria acreditar!

 

 

 

 

publicado por Carapaucarapau às 22:19
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Sexta-feira, 19 de Março de 2010

Algarismos e números

 

 

Eu cá não sei se a conversa que a seguir transcrevo é entre dois algarismos, dois números ou 2 cromos. Mas ela prova como a nossa conversa do dia a dia está cheia de expressões, referências, frases feitas, onde os números entram em abundância.

Deixo aqui um desafio a quem queira dar a sua contribuição.

 

- É pá! O gajo é um 0 (zero) à esquerda!

- Em compensação ela é verdadeiramente a nº 1.

- Olha que 2!

- Não há 2 sem 3.

- 3 foi a conta que Deus fez.

- Quais 3? Os 3 da vida airada?

- Qual nada. Os da tua vizinha.

- De qual?

- Não me digas que não a conheces?

- Só conheço aquela:

       Pobre como Job

      Casou a minha vizinha.

      O noivo tinha 3 vinténs

      E ela nem isso tinha.

- Afinal sempre conheces!

- E tu conheces alguma de 4?

- Se conheço! Há dias apanhei uma que nem o 4 fazia.

- Foste de 4 para casa…

- Mais ou menos.

- É uma posição como outra qualquer. Agora se queres saber mais recomendo-te que vás aqui. Talvez aprendas umas coisas…

- Aprendi foi com as aventuras dos 5.

- Eu 6 lá…

- Eles pintavam o 7!

- Não me fales nisso que me lembro logo do 007.

- P’rá porrada era o maior. Deixava os gajos feitos num 8.

- Esse nem deve ter andado os 9 meses na barriga da mãe…

- Tens aí uma de 10?

- Não me lembres desgraças, Então não é que acabaram por jogar 10 contra 11?

- 11? Isso é corno, no Brasil.

- Cá só é corno se o 11º for o último.

- E os 12 Homens em fúria? Viste? E os 12 de Inglaterra?

- Vi foi os 12 apóstolos sentados à mesa com cara de caso.

- Não era caso para menos. Havia tão pouco que comer…

- Tão pouco e eles eram logo 13.

- Não me fales em 13 que me dá um azar do 14!

- Essa foi boa. Acertaste no 20.

- Por falares nisso. E os cigarros 20-20-20?

- Eram os 3 vintes. 20 cigarros, 20 gramas, 20 tostões.

. Depois os tostões foram aumentando…

- Mas a marca ficou a mesma. Ainda me lembro de terem chegado aos 25.

- Isso é um quarteirão. Dantes, os carapaus vendiam-se à dúzia e ao quarteirão.

- Isso era quando as pessoas sabiam contar!

- Era. Na feira dos 24.

- Lembras-te daquela gaja que por lá aparecia e que a malta dizia que era um cavalo de 30 moedas.

- Boa como a tua prima.

- Não metas a minha prima nisto que ainda me arranjas um 31.

- Depois tinhas de ir ao médico.

- Ora diga lá 33.

- Outros tempos. Agora é só ecografias e TAC’s.

- E o Ali Babá e os 40 ladrões?

- É pá política aqui não. Mas olha que nem sabia que eram assim tantos lá no governo…

- Parece-me que são capazes de serem bem mais. Aí uns 69…

- Pronto! Só cá faltava esse.

- Esse? Esses, queres tu dizer. Com a esperança de vida a aumentar cada vez há mais pessoas a fazer esse número.

- No trapézio?

- Em qualquer sítio. Mas recomendo-te este onde o nosso amigo Carapau fez um estudo sobre o assunto.

- Esse também tem a mania…

- Mas não vai chegar aos 80…

- A volta ao mundo em 80 dias? Viste?

- Vi e li. Li com o Verne e vi com o David Niven e o Cantinflas.

- Esse também era um grande número…

- 100 anos que eu viva…

- Chiça! Tanto tempo?

- 101, ainda é mais.

- E 110 mais ainda. “Amigos 110 todos nós temos…”

- Eram os amigos do Camilo.

- Mais ainda, eram os 200 irmãos!

- Por falar nisso. Não tenho visto o teu amigo…aquele pequenino e magrinho…

- O 250 gramas?

- Esse mesmo! Eram precisos 2 para fazerem 500.

- Os portugas de 500 é que eram gajos com eles no sítio. Foram por esse mundo fora…

- E agora também vão. Uns, nos voos “low coast” de férias, outros de comboio prá emigra. De comboio e também de avião. Alguns vão para casa do 14…

- Mas os de 500 vinham carregados de tudo. Ele era pimenta, canela, cravinho da Índia, ouro…

- Valeu-lhes de muito…

- A eles e a nós. Estamos cada vez pior. Sabes que também agora se chama a esta geração a dos 500?

- Sim. Dos 500 euros.

- Nunca mais chegamos aos 1000.

- Ih! Tantos!

- Tantos? E as 1001 noites?

- Gostava das histórias com odaliscas…

- Eu cá prefiro as 1001 maneiras de cozinhar bacalhau.

- É pá já viste as horas? Temos de ir almoçar!

- Com 1.000.000 de diabos! Já estamos atrasados…

 

 A propósito de números, fica aqui uma informação: este blog fez 2 anos de vida no passado dia 8 e tão entusiasmado andava com as flores de pedra, que se esqueceu de comemorar a data. Pior do que isso foi não deixar uma palavra de agradecimento a quem, semana após semana, aqui o vem visitar. É uma penitência que fica bem a quem a pratica e que muito honra o Carapau. Aqui fica para que conste.                                  Aos deknau/tri/dumildek.                                                                                   É assim, em esperanto, para todos perceberem!

publicado por Carapaucarapau às 15:00
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Sábado, 13 de Março de 2010

O semáforo

                                                       

 

 

 

Há dias ao ler num blog este post lembrei-me duma história verdadeira passada há uns anos.

Era uma tarde de domingo do princípio de verão. Tudo convidava a uma ida à praia. A maior parte da população da cidade tinha seguido, logo de manhã, esse caminho.

Ele porém não foi, porque tinha de ir esperar um familiar ao aeroporto a meio da tarde e ela tinha de ir esperar a mãe que chegava do norte num autocarro Expresso.

Depois de almoço pensaram os dois a mesma coisa. Passar as duas horas que tinha livres para descansar e ler um bocado. E como o dia estava lindo, nada melhor que ir até à beira rio, a olhar a água e a ler.

Foi assim que, quase ao mesmo tempo, os dois carros se encontraram lado a lado, à sombra, virados para o rio. Janelas abertas, para beneficiar duma ligeira brisa que corria, os encostos dos bancos numa posição mais confortável e a leitura.

Ela um livro, ele o jornal de fim-de-semana.

Quando ela chegou ele levantou os olhos do jornal e olhou, ela parou o carro e deu também uma vista de olhos em redor. Os olhares dos dois cruzaram-se.

Durante a próxima hora e meia voltaram a olhar-se várias vezes. Sempre que ela mudava de folha, levantava a cabeça e olhava discretamente, sempre que ele mudava de artigo fazia o mesmo. Por vezes os olhares encontravam-se, outras vezes não. O que cada qual pensava só eles o saberiam. Suponho que ambos sentiam que lhes era agradável essa “inocente” e “casual” troca de olhares.

“Quem será ele e o que fará aqui sozinho num dia como este?” deveria interrogar-se ela. “Que fará esta aqui sozinha a olhar para a água?” pensava ele.

O jogo durou durante todo o tempo em que os carros permaneceram lado a lado.

Às tantas ele olhou para o relógio, viu que estava na hora, arrumou o jornal e preparou-se para arrancar. Ela, porque se apercebeu desses movimentos ou porque também estava na hora, atirou o livro para o banco do lado e arrancou primeiro. Ele seguiu-a. Qualquer que fosse o destino de ambos, aquela primeira parte do trajecto para sair da beira-rio, seria a mesma.

Ela atravessou a baixa da cidade e encaminhou-se para a Avenida da Liberdade. Era também um dos possíveis caminhos para ele. Ao princípio da Avenida ela acelerou a marcha e ele fez o mesmo. Seguiam perto um do outro. A meio da Avenida ela aproximou-se, relativamente veloz, do semáforo que apresentava a luz verde, mas que de repente passou a amarela. Ele pensou que ela ia passar com o amarelo e acelerou ainda mais para a não perder.

Mas ela resolve meter travões a fundo e parar. Deu-se o inevitável. O carro dele, mesmo com uma travagem violenta, só acabou por parar contra a traseira do carro dela. O choque já não foi violento, mas mesmo assim provocou umas amolgadelas nos dois carros.

Saíram os dois ao mesmo tempo e olharam para os estragos.

Ele tartamudeou umas desculpas, “não esperava aquela paragem brusca”, mas a culpa era dele.

Ele então disse que não tinha muito tempo, precisava de estar no aeroporto dentro de minutos, faria a participação à companhia de seguros no outro dia logo de manhã, só precisava dos elementos dela e do carro: identificação dela, livrete do carro, companhia de seguros, o habitual.

Ela também disse que estava com pressa tinha de ir esperar a mãe.

Foi assim que trocaram de papéis, de moradas, de números de telefones.

“Se houver algum problema com a companhia, contacte-me para o que for preciso” disse ele, renovando o pedido de desculpas. E acrescentou, a sorrir:

“Coisas que acontecem”.

 “Claro. Não tem mal”, disse ela a sorrir também.

Voltaram a arrancar e cada qual seguiu o seu caminho.

No dia seguinte ele fez a participação do acidente à companhia de seguros e tudo deve ter corrido bem, porque ela nunca o contactou. Nem por esse motivo, nem por outro. Ele fez o mesmo. Nunca mais se cruzaram na vida.

 

O que aconteceu à vida dela, não sei. Mas sei o que aconteceu à dele. Fomos amigos durante uns bons anos e contávamos algumas das nossas “histórias” um ao outro. Daí eu saber esta com os pormenores. Passados uns dois anos ele casou. Passados mais meia dúzia morreu num acidente de viação.

Às vezes pergunto-me se aquele semáforo não podia ter representado outro papel na vida dele. Que influência as pequenas coisas podem ter na vida das pessoas?

Provavelmente nenhuma. A única coisa que podemos fazer é especular e, de qualquer maneira, é tempo perdido.

 

 

 

publicado por Carapaucarapau às 19:56
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Domingo, 7 de Março de 2010

Flores de pedra

 

 Amanhã, 8 de Março, é o dia Internacional da Mulher. Também por isso, esta história é dedicada às Mulheres, em particular às que costumam visitar esta caverna.

É uma pequena história inventada, mas que tem uma pré-história. Há algum tempo atrás Alguém me “convidou” a escrever uma historieta em que entrasse um homem sem pernas, chamado Bitola e que fazia passeios. A minha resposta foi: “E porque não escreves tu isso?”

Porém, dois ou três dias depois voltei a pensar no assunto e reparei que aquele “fazia passeios” podia ter pelo menos duas interpretações. E foi então que me lembrei dumas coisas, mudei de ideias e resolvi escrever…

 

O Bitola

 

   Ezequiel Lontra, que mais tarde viria a ser conhecido por Bitola, nasceu no Alentejo e foi fazer a tropa para Lisboa. Cumprido o serviço militar e tendo tomado o gosto pela cidade grande, por ali ficou. Arranjou emprego nas oficinas da Carris, onde chegou a ser mecânico electricista. Homem bem disposto, alegre e brincalhão, fazia com facilidade amizades, quer entre os colegas de trabalho, quer mesmo no meio feminino, onde era, à sua maneira, um D. Juan.

   Foi exactamente a quando da sua estadia na Carris, que lhe arranjaram a alcunha de Bitola, depois duma acesa discussão com dois colegas sobre a bitola das linhas dos eléctricos e dos comboios. E passado algum tempo, acabou por incorporar no nome, ainda que de maneira não oficial, essa alcunha.

   - Ezequiel Lontra Bitola - respondia sempre que lhe perguntavam o nome.

   Foram meia dúzia de anos os que o Bitola passou nas oficinas da Carris, contente com a vida, com os amigos e com as diversas namoradas.

   Até que um dia, aconteceu o acidente que lhe iria alterar toda a vida. Quando estava, na oficina, deitado no chão a reparar um carro eléctrico, entrou um outro na linha ao lado, o condutor não se apercebeu do Bitola e o pobre homem ficou sem as duas pernas. No hospital não tiveram outra solução que não fosse completar a amputação, ficando com dois cotos.

     Depois de meses de tratamentos, fisioterapia e adaptação à nova realidade, o Bitolas teve muita dificuldade em se adaptar às próteses. Passava a maior parte do tempo sem elas. Para se movimentar, servia-se das mãos apoiadas no chão como se fossem pernas e movimentava o tronco como se posse um pêndulo. Recebeu a indemnização do Seguro, outra da Carris correspondentes aos anos de serviço, pois não aceitou a nova função que lhe queriam dar e fez-se de novo à vida. Um amigo dele era calceteiro da Câmara de Lisboa e com ele aprendeu a arte. De vez em quando ajudava os calceteiros nas obras, até que um dia o encarregado, vendo-lhe o jeito, chamou a atenção dos seus superiores e o Bitola foi admitido como calceteiro da Câmara. Os trabalhos mais complicados e que queriam que ficassem um brinco, eram sempre da responsabilidade do Bitola. A rapidez e a perfeição de execução, o ar sempre bem disposto, um assobio ou uma canção nos lábios, atraíam a atenção das pessoas que passavam, sobretudo quando os trabalhos nos passeios se realizavam nas zonas mais concorridas. Os turistas tiravam-lhe fotografias e ele correspondia sempre com um sorriso. Um dia, quando fotografado por duas belas inglesas, ele fez-lhes um sinal para esperarem um pouco e, com as suas pedras e a sua habilidade, fez uma flor de pedra que ficou assim incorporada no passeio. Elas soltaram uns gritinhos, agradeceram, fotografaram uma vez mais o artista e a sua obra e lá foram à vida.

   Então, daí para a frente, sempre que alguma mulher se interessava por ele ou pelo seu trabalho e desde que ele também simpatizasse com ela, o Bitola “esculpia”, com as pedras que aparelhava meticulosamente, uma flor na calçada. A partir de certa altura, porque o trabalho era um pouco mais demorado que a calçada “corrida”, ele trazia num saco umas tantas pedrinhas já aparelhadas para fazer as flores.

    Ainda hoje haverá destas flores** espalhadas pelos passeios de Lisboa, que quem andar com atenção talvez descubra, graças a essa invenção do Bitola, para se tornar simpático para com as mulheres.

   Depois outros calceteiros ter-lhe-iam seguido o exemplo, mas flores como as do Bitola não havia nenhuma.

 

                                                                           -O-

 

** … e essas coisas, de que me lembrei e que me ajudaram a inventar a história, foram exactamente estas flores de pedra. Há uns anos atrás eu sabia da localização de várias destas flores nos passeios de Lisboa, sobretudo na “Baixa”. Há dias desloquei-me para ver se fotografava algumas delas para aqui as colocar. Não descobri nenhuma. De focinho no chão, percorri aqueles passeios onde tinha a certeza que em tempos havia umas tantas, e nada vi. As sucessivas obras, as alterações dos traçados dos passeios, novos materiais, tudo serviu para fazer desaparecer essas flores que calceteiros “apaixonados” (digo eu) deixavam aqui e ali. Tive ocasião de reparar que os passeios estão muito maltratados, com muito remendos mal feitos e duma maneira geral fruto de muito mau trabalho. Suponho que actualmente são feitos de empreitada, onde a palavra de ordem é “despachar”. Mas esses problemas já são contas doutro rosário, que não este agora e aqui.

As fotos que aparecem mais abaixo, mostram duas composições parecidas com essas flores, mas neste caso são estrelas e pertencem a composições arquitectónicas de alguns passeios. Fotografei-as (1 e 2) e limitei-me a isolar estes pormenores para dar uma ideia do que eram essas flores. A fotografia (3) já mostra uma flor/estrela avulso numa calçada e encontrei-a na net. No entanto a flor aparece feita com pedras negras ressaltando na calçada de pedras brancas. Aquelas a que me refiro no conto, eram todas feitas de pedra branca e estavam espalhadas, por aqui e por ali, na calçada “corrida” e não fazendo parte de nenhum plano. Eram difíceis de encontrar, e isso também constituía um dos motivos do seu interesse. Poucas pessoas davam por elas Eram “liberdades poéticas” de alguns calceteiros.

 

1                                                                              

     

  2                                                                   3

                                              ( Passeios de Lisboa-pormenores)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

publicado por Carapaucarapau às 13:39
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Segunda-feira, 1 de Março de 2010

Gente (V)

 

 

 

 

                                  

 

Ou “A Vinha do senhor…”

 

Durante uns anos trabalhamos na mesma empresa, mas raramente nos víamos, pois a nossa actividade desenrolava-se em áreas geográficas diferentes. Mas, em geral todos os meses, tínhamos de fazer umas visitas em conjunto, o que normalmente durava um dia inteiro.

Vivia na região do Oeste, “capital da pêra rocha e da maçã” como ele gostava de dizer.

Era um tipo alto, fisicamente bem constituído e fazia muitos exercícios físicos para se manter em forma e poder praticar a actividade de que mais gostava: a caça submarina. Era quase um profissional, pois fornecia alguns restaurantes de peixe e marisco, quando as coisas corriam bem. Andava nessa altura pelos cinquenta e poucos anos.

Num certo dia de Outono em que percorríamos uma estrada da região e onde a cada passo se viam, junto à berma, toneladas de maçãs e peras já encaixotadas e à espera de serem carregadas e transportadas, ele tem esta saída:

- Se quiser levar uma caixa de fruta não tenha problema. Pare e meta uma na caixa do carro.

- Eu olhei para ele e disse-lhe, calculando já qual seria a resposta:

- Então eu ia lá roubar uma caixa de fruta?

- Qual roubo? Roubo seria se as levasse todas. Assim uma caixita… ninguém diz nada…

Eu ri-me com a teoria e lá seguimos viagem.

Ele era daquela zona, conhecia meio mundo, era duma descontracção total e não ligava a certas convenções. Às vezes tinha atitudes que me faziam rir. Com o tempo fui entendo melhor a sua maneira de ser.

Numa outra vez, ao passar em determinado sítio, ele disse-me:

- Ali naquela vinha há as melhores uvas Moscatel que já comi.

- É uma vinha toda de Moscatel? - Perguntei eu para dizer alguma coisa.

- Não. Só duas ou três cepas. Uma vez…

E contou-me a história.

Uma vez, poucos anos atrás, ia a passar por ali e de repente viu-se obrigado a parar o carro para ir fazer uma necessidade fisiológica, que se lhe pôs com carácter de urgência.

Subiu então a uma vinha que ali havia num plano superior à estrada, para ficar mais resguardado dos olhares de quem passasse de carro. Era fim de Setembro, as uvas, já maduras, estavam à espera da vindima. Provou um bago, era Moscatel, estava no ponto. Apanhou um cacho e comeu-o. Depois apanhou outro e levou-o para o carro. As uvas eram deliciosas. E então durante 3 ou 4 anos “aquelas” cepas estiveram por sua conta. Na altura certa, parava, apanhava um ou dois cachos de Moscatel e comia-os. Aí pelo 5º ano após a descoberta, ia a passar com um amigo, parou o carro e convidou-o a ir com ele:

- Vais comer as melhores uvas Moscatel da tua vida – disse-lhe.

O amigo pensou que a vinha fosse dele ou de algum familiar chegado. Não teve dúvidas em segui-lo.

Subiram a pequena rampa de acesso à vinha e banquetearam-se. Tão entretidos que nem deram pela chegada dum homem já de certa idade, de sachola ao ombro, que chegou perto deles e os cumprimentou:

- Ora então boa tarde meus senhores. São boas as uvas não são?

Eles olharam um para o outro, como dois miúdos apanhados a roubar bolachas à mãe, e disseram que sim, que eram muito boas.

Então o homem, que era o dono da vinha, falou-lhes assim, com muita calma:

- Não me lembro de ver aqui os senhores quando foi preciso cavar a vinha, podá-la, empá-la, pulverizá-la. Ou estou enganado?

Eles gaguejaram umas desculpas, disseram que só por acaso tinham vindo ali à vinha, que estavam a provar só uns bagos e retiraram-se.

- Nunca tive tanta vergonha na vida – disse-me ele a rematar a história – e não voltei a parar aqui para ir às uvas.

E acrescentou:

- Também nunca mais comi uvas tão saborosas.

Eu ri-me e fiquei a imaginar a cena.

É dos livros, a melhor fruta, a mais saborosa é a roubada. Já vem lá da origem dos tempos. Adão perdeu-se por uma maçã, só por que não era dele.

A serpente tanto pode ser alguém a bichanar-nos ao ouvido “come, come”, como pode ser uma prosaica dor de barriga a proporcionar a ocasião. E a ocasião faz o ladrão, toda a gente sabe.

Um tipo está “ali” sozinho, começa a olhar para uma coisa que nunca petiscou nem sabe o que é (ou até já conhece, saboreou e gostou) vem a serpente a rastejar e silva: “come, come, olha como deve ser apetitosa” e, seja maçã, Eva ou uvas Moscatel, é difícil resistir à tentação e acaba invariavelmente por comer.

Depois, corre-se sempre o risco de aparecer o dono, seja ele quem for, quantas vezes, mesmo que só metaforicamente, de sachola ao ombro…

 

 

publicado por Carapaucarapau às 13:55
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