Intróito
Este sábado (21/3) é o Dia Mundial da Poesia. Por esse motivo o post de hoje conta com a “colaboração” destes dois senhores. Um “colabora” com o poema e o outro com os dois retratos.
Fernando Pessoa Almada Negreiros
Foram amigos e enquanto o 1º mostrava a sua multifacetada poesia através dos heterónimos, o 2º desdobrava-se em múltiplas actividades: pintor, poeta, ensaísta, dramaturgo, romancista e polemista. Este pintou aquele num retrato que toda a gente conhece e auto-retratou-se várias vezes. Como curiosidade, o 2º morreu aos 77 anos de idade, em 1970, exactamente no mesmo quarto em que o 1º também se finara 35 anos antes. Se o 1º fosse vivo quando o 2º morreu, teria feito, na véspera, 82 anos.
Confuso? Foi esse o objectivo.
E agora vamos ao post propriamente dito…
O Tejo é mais belo…
(Fernando Pessoa/Alberto Caeiro)
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Lembro-me sempre desta poesia, quando visito o rio que “corre pela minha aldeia”.
Rio pequeno, rio que não chega directamente ao mar, pois é afluente dum outro, é hoje pouco mais que uma vala de esgoto a céu aberto. Nos Invernos chuvosos lá consegue levar alguma água e diluir um pouco o esgoto que transporta. Mas quando o vou visitar, ainda “vejo nele tudo o que lá não está”. No rio da minha aldeia nunca navegou nem um pequeno barco a remos; mas olho-o e ainda vejo “navegar nele a memória das naus”, que é como quem diz, a minha infância, a minha iniciação à pesca, as pescarias clandestinas, os banhos no açude, o “passar para a outra margem”, a aventura que era essa passagem, o pisar o lado proibido da vida. “Poucos sabem qual é o rio da minha aldeia”. “E por isso, porque pertence a menos gente”, é que para nós, os que o conhecemos quando jovens, ele é maior que o Tejo.
Gosto de rios. Visito-os com frequência e a alguns já os “vi nascer” algumas vezes. “Para além do rio da minha aldeia”, ficam os outros. Tenho uma relação especial e praticamente diária com o Tejo, o Douro encanta-me e quase posso dizer que não tem meandros que eu não conheça, ao Mondego, o conhecido “bazófias”, está ligada parte da minha juventude. Há anos tive um projecto de descer o Guadiana, mas não se concretizou por falta de companhia.
Ao contrário do que diz o poeta, quando estou ao pé do rio da minha aldeia, ele faz-me pensar em muitas coisas e também noutros rios.
Foi numa das últimas visitas que lhe fiz, que pensei neste post.
Duvido que um dia ele volte a ser o que já foi. Por muitas campanhas e projectos de reabilitação que lhe façam, pode melhorar, mas nunca mais será o mesmo. A água não sobe o rio, e a vida também não anda para trás. Acontece isso comigo, com o “rio que corre pela minha aldeia”…
Este post é publicado com um dia de antecedência em relação à data prevista, exactamente porque este fim-de-semana vou, uma vez mais, visitar o “rio que corre pela minha aldeia”.