"O grito" de Edvard Munch
Numa das minhas últimas passagens pelo recinto onde se faz a Feira da Ladra, resolvi meter-me por umas ruelas que há nas imediações e dar uma vista de olhos por um sítio onde há anos presenciei uma cena que nunca mais esqueci.
Por essa altura funcionava num dos prédios que rodeia o recinto da Feira uma Repartição Pública ligada aos serviços do Exército. Eu tinha de ir lá consultar uns documentos para a empresa onde trabalhava poder concorrer a uns trabalhos. Como na altura eu não sabia onde ficavam tais instalações, foi comigo um velho conhecedor da cidade de Lisboa, alfacinha de gema, a rondar os cinquenta e muitos anos de idade, boémio desde muito novo, jogador inveterado, namoradeiro consumado, exímio contador de anedotas e mais umas outras tantas coisas, para além de ser uma ótima pessoa.
Fomos no carro dele e como a entrada para o tal edifício era feita pelas traseiras, ele meteu o carro numa dessas ruelas e aí o estacionou. Saímos do carro, tínhamos uns 30 ou 40 metros para andar a pé e foi então que tudo aconteceu.
Tínhamos dado meia dúzia de passos, quando, de uma janela dum r/chão, uma senhora já “bem cinquentona” soltou um grito: “Octávioooooooooo!!!”. E logo de seguida voltando-se para o interior da casa, outro grito: “Mãeeee! Sabe quem está aqui? O Octáviooooo!!!”.
Octávio era a pessoa que ia comigo e que a, estes gritos, parou em frente à janela. Eu fiquei 2 ou 3 metros retirado, a apreciar a cena. Apareceu então à janela uma outra senhora já de bastante idade e cega (era a mãe por quem a filha tinha chamado). Deu-se uma rápida troca de cumprimentos entre os três, entretanto a velha senhora retirou-se e quando ficaram só os dois, a “senhora do grito” retirou do pescoço um fio donde pendia uma pequena caixa em forma de coração, abriu-a, voltou-a para o Octávio e perguntou: “lembras-te?”.
Era uma foto dele, quando tinha à volta de vinte anos.
Logo de seguida despediram-se e eu e ele lá fomos ao trabalho.
Contou-me então que tinha sido uma antiga namorada dos seus anos de jovem, que aquele sítio era conhecido pelas “Travessas” e que ninguém doutro Bairro lá podia entrar para namorar as moças, sem autorização da “malta” do Bairro. Autorização que ele tinha, obviamente e, pelos predicados que eu lhe conhecia, difícil era não ter essa e “outras” autorizações.
Disse-me que já não a via desde esses tempos e que, se ela não lhe tivesse gritado o nome, nem a teria reconhecido.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.