(Nem esta é nenhuma das Alices nem o país é o das maravilhas)
Alice (a alentejana)
Eu era assíduo leitor do Diário de Lisboa e frequentava o mesmo café com um pequeno grupo de amigos, onde quase todas as noites nos reuníamos. Uma noite, quando a cavaqueira tinha chegado ao fim e me dirigia para o carro Ela chegou-se perto de mim e disparou:
- Conheces o Ramiro?
Eu olhei-a com estranheza, não a conhecia, e respondi:
- Conheço pelo menos dois.
- O grandalhão, o conhecido por “doutor” e que é um boémio.
- Estou a ver. Conheço-o de vista, sei quem é, mas não mais que isso. Vem quase todas as noites ao café.
- Ele estava lá no café?
- Não reparei, não me lembro de o ver, não sei. Vá lá ver.
- Não quero. Se quisesse já lá tinha ido. Se fores para os meus lados dás-me uma boleia?
- Sou capaz disso…
- Sabes que eu sei quem tu és?
- Ai sim? Como?
- És jornalista do Diário de Lisboa.
- Eu?
- Sim, não vale a pena disfarçares. Tu e o grupo de amigos, com quem costumas vir ao café.
- Está enganada. Está a confundir-me com outra pessoa.
- Não estou nada e não precisas negar. Também isso não faz diferença nenhuma. Não te vou pedir dinheiro. Nunca peço dinheiro a ninguém. O que ganho chega-me. Quando estou aflita o “doutor” resolve-me o problema. É o único homem de quem aceito dinheiro e ele sabe porquê. A ti só te peço uma boleia. – E disse isto tudo num jacto quase sem respirar.
E lá fomos e a conversa prolongou-se.
Foi desta maneira que conheci Alice, uma alentejana que vivia em Lisboa há bastante tempo.
Era morena, de cara mirrada, olhos vivos e aspecto de quem não tinha vida fácil.
Já não era nenhuma criança, trabalhava no que lhe aparecia e era uma “compincha” para as farras, sendo o célebre “doutor” Ramiro um dos seus assíduos companheiros. Além de outras coisas eram os dois alentejanos e ambos lá das bandas da Amareleja. Ficamos um bom pedaço de tempo a falar e contou-me a história da vida dela. Ninguém é historiador isento em causa própria e certamente que pintou umas coisas com cores diferentes das verdadeiras, mas ouvi-a com interesse. Disse-me como vivia, tinha um quarto em casa dum casal, que também lhe deixava servir-se da cozinha e que o grande sonho da vida dela era ter uma casa só para ela. Andava à procura duma de renda barata, pois já estava farta de viver em casa dos outros, mas a coisa estava difícil.
Quando nos despedimos disse-me que eu era um tipo porreiro, que podia estar à vontade que ela não ia dizer a ninguém que eu era jornalista, mas que não percebia porque eu negava.
Mais tarde vim a saber desta teimosia dela em querer à força que eu fosse jornalista. No “meu” grupo de amigos todos éramos leitores do Diário de Lisboa, cada qual comprava o seu jornal e no café muitas vezes estávamos a lê-lo. Acabamos por ser conhecidos, sem sabermos, pelo “grupinho do Diário de Lisboa”. Daí a conclusão que a Alice deve ter tirado sobre a nossa “profissão”. De leitores passou-nos a redactores.
Por diversas vezes a partir dessa noite encontrei a Alice que, sempre que me via, me contava mais um episódio da sua vida. Uma noite estava eu parado num semáforo e ouvi uma gritaria na rua, a que não liguei importância. Daí a uns segundos bateu-me no vidro do carro a Alice que queria falar comigo. Entrou, eu arranquei e ela despejou a grande novidade: tinha alugado um andar. Ainda não morava lá, ainda não tinham ligado a água nem a electricidade, o que aconteceria dentro de dias, mas mesmo assim queria lá ir comigo para me “apresentar” a sua casa. Nunca iria querer homens lá em casa “nem o Ramiro, já lhe disse isso mesmo”, mas eu era um caso especial e queria que eu lá fosse. Disse-lhe que ficava muito honrado pelo convite, que ficava tão contente como ela por ter arranjado casa, mas que naquelas condições, sem luz, não iria lá, não dava para ver nada, ficava para outro dia. Reclamou, queria mesmo que eu lá fosse, mas ao fim de pouco tempo aceitou as minhas razões e ficou combinada a visita para uns dias mais tarde.
Assim foi. Num fim de tarde, algum tempo depois deste último encontro, encontramo-nos e ela levou-me a visitar a casa.
Mostrou-me todos os cantos e recantos, mostrou-me mesmo o quarto duma hóspede que entretanto já tinha arranjado, uma estudante de medicina que tinha em cima duma pequena mesa no quarto um dos volumes da Anatomia, que a Alice me mostrou com orgulho como se fosse ela a estudante, e na despedida fez-me um pedido: queria que um dia, a combinar, eu fosse jantar lá a casa, um jantarinho feito por ela, um jantar alentejano.
- Aceitas? – Havia ansiedade na voz dela ao fazer a pergunta.
- Claro que aceito e sinto-me muito honrado. Havemos de combinar isso.
- Ainda bem. Fico muito contente. Quando tiver a casa já mais composta eu ofereço-te o jantar.
O tempo passou, deixei de ser leitor do Diário de Lisboa, porque entretanto o jornal acabou, o café onde me reunia com os amigos fechou e algum tempo depois passou a ser um centro comercial, a minha vida levou uma volta, o grupo de amigos foi-se desfazendo, tomando cada um o seu rumo e eu nunca mais vi nem soube da Alice, nem nunca mais tive oportunidade de vir a apreciar os dotes culinários duma mulher, que, sem eu saber ainda hoje porquê, simpatizou com um jovem “jornalista do Diário de Lisboa” a quem tinha convidado para um jantarinho.
Estejas onde estiveres, Alice, eu “ainda” não me esqueci do convite.